25 - NATAL DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO.
Queremos que seja ouvido
o desejo no qual redundam todos os demais: "Salvator noster, salva nos:
Salvador nosso, salvai-nos!" (L 244). São Jose Marello
João 1,1-18 (MISSA DO DIA 25 dezembro 2025)
"No começo aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e era Deus. Desde o princípio, a Palavra estava com Deus. Por meio da Palavra, Deus fez todas as coisas, e nada do que existe foi feito sem ela. A Palavra era a fonte da vida, e essa vida trouxe a luz para todas as pessoas. A luz brilha na escuridão, e a escuridão não conseguiu apagá-la.
Houve
um homem chamado João, que foi enviado por Deus para falar a respeito da luz.
Ele veio para que por meio dele todos pudessem ouvir a mensagem e crer nela.
João não era a luz, mas veio para falar a respeito da luz, a luz verdadeira que
veio ao mundo e ilumina todas as pessoas.
A
Palavra estava no mundo, e por meio dela Deus fez o mundo, mas o mundo não a
conheceu. Aquele que é a Palavra veio para o seu próprio país, mas o seu povo
não o recebeu. Porém alguns creram nele e o receberam, e a estes ele deu o
direito de se tornarem filhos de Deus. Eles não se tornaram filhos de Deus
pelos meios naturais, isto é, não nasceram como nascem os filhos de um pai
humano; o próprio Deus é quem foi o Pai deles.
A
Palavra se tornou um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e de verdade.
E nós vimos a revelação da sua natureza divina, natureza que ele recebeu como
Filho único do Pai.
João
disse o seguinte a respeito de Jesus:
-
Este é aquele de quem eu disse: "Ele vem depois de mim, mas é mais
importante do que eu, pois antes de eu nascer ele já existia."
Porque
todos nós temos sido abençoados com as riquezas do seu amor, com bênçãos e mais
bênçãos. A lei foi dada por meio de Moisés, mas o amor e a verdade vieram por
meio de Jesus Cristo. Ninguém nunca viu Deus. Somente o Filho único, que é Deus
e está ao lado do Pai, foi quem nos mostrou quem é Deus."
Assim
como acontece com a missa da noite, o evangelho indicado para a missa do dia na
solenidade do Natal do Senhor também é o mesmo, todos os anos. Trata-se do
prólogo do Evangelho de João – Jo 1,1-18. Esse texto é considerado uma das
páginas mais belas e profundas de toda a Bíblia. É um poema de elogio à Palavra
de Deus, cuja encarnação constitui o centro do mistério do Natal e, consequentemente,
da vida cristã. Enquanto Mateus e Lucas procuram explicar a origem messiânica
de Jesus a partir de relatos e reconstrução de prováveis genealogias (cf. Mt
1,1-17; Lc 3,23-38), o autor do Quarto Evangelho recorda a sua preexistência
enquanto Palavra ou Verbo de Deus que precede a criação do mundo. Muitos
estudiosos acreditam que esse texto é um acréscimo posterior da comunidade
joanina, enquanto outros o vêem como uma introdução pensada pelo autor, desde o
início, como chave de leitura de toda a obra, uma vez que no prólogo já se
percebem indicações de praticamente todas as linhas teológicas tratadas no
Quarto Evangelho e nas cartas atribuídas à respectiva tradição. A extensão do
texto não permite um comentário pormenorizado versículo por versículo. Por
isso, procuramos colher a mensagem central do texto.
O
prólogo do Evangelho de João foi visto com desconfiança em muitas comunidades
cristãs dos primeiros séculos, devido a uma suposta influência da filosofia
grega. Isso foi mais pela linguagem do que mesmo pelo conteúdo em si. De fato,
nesse texto o autor procura conciliar a maneira de pensar dos gregos com o
jeito de acreditar dos hebreus. Contudo, embora expressa em linguagem mais
próxima da filosofia e poética gregas do que da literatura hebraica, a mensagem
deste prólogo possui plena relação e continuidade com a teologia predominante
da Bíblica Hebraica, apesar dos pontos de ruptura, como acontece em todo o Novo
Testamento. Até mesmo em relação à linguagem fica evidente que o autor fez uso de
modelos já conhecidos no mundo judaico, embora não tão aceitos, como os elogios
à Sabedoria em Sb 6–9, Pr 8 e Eclo 24. De fato, a maneira como o autor do
Quarto Evangelho apresenta a Palavra-Verbo (logos – λόγος) possui muita afinidade com o que se dizia
da Sabedoria (sofia – σοφίᾳ) no Antigo
Testamento que, personificada, desceu do céu e se tornou acessível à
humanidade. Porém, dos textos citados do Antigo Testamento, que fazem elogio à
Sabedoria e influenciaram o autor do Quarto Evangelho, somente o de Provérbios
faz parte da Bíblia Hebraica.
Feitas
algumas considerações a nível de contexto, olhemos para o texto e, logo de
início, já percebemos a primeira grande afinidade com o Antigo
Testamento: «No princípio era Palavra, e a Palavra estava com Deus e a
Palavra era Deus» (v. 1). A primeira expressão do prólogo é a mesma que
abre o livro da Gênesis, na tradução grega dos Setenta (LXX): “no princípio” (Ἐν ἀρχῇ - en arkê). Em Gn 1,1 se diz que no “princípio
Deus criou…”, mas aqui se diz que num princípio anterior à própria criação já
havia a Palavra que estava com Deus e era ele próprio. Isso quer dizer que,
enquanto Palavra, Jesus Cristo já existia antes da criação do mundo e ele mesmo
foi agente da criação, junto com Deus, o Pai (v. 3). Talvez essa seja uma das
descobertas mais surpreendentes e preciosas que o autor do Quarto Evangelho nos
fornece. Existem hinos até mais antigos do que este que afirmam a
pré-existência do Cristo, como Filho de Deus e agente da criação (cf. Ef
1,3-14; Cl 1,15-20), mas não afirmando que ele é a Palavra com a clareza que
João faz aqui. E a profundidade deste primeiro versículo de João se torna ainda
mais evidente se o compararmos aos Sinóticos, que chegam no máximo em Adão e
Abraão, quando procuram identificar as origens messiânicas de Jesus.
Na
sequência, o autor exalta as qualidades do Cristo enquanto Palavra e seus
efeitos para o mundo: «Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens,
e a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la» (vv.
4-5). Vida e luz são duas das categorias teológicas mais relevantes na
perspectiva do Quarto Evangelho, e aqui são diretamente associadas a Jesus: ele
é fonte de vida e de luz. No auge de sua vida pública, Jesus mesmo vai dizer
que veio ao mundo para trazer luz e comunicar vida em abundância (cf. Jo 8,12;
10,10). Ele vai dizer claramente ser a luz e a vida verdadeiras. Sua luz é
eterna, brilha fortemente, mas é perseguida pelas trevas, que são todas as
forças de morte manifestadas ao longo da história, incluindo o poder religioso
instituído em Israel e os diversos sistemas de poder político que já dominaram
aquele povo. Na verdade, as trevas são todas as oposições ao projeto de Deus,
desde a criação até os tempos atuais. A primeira vitória da luz aconteceu na
criação: o primeiro ato criador de Deus foi invocar a luz sobre o caos
primordial (cf. Gn 1,3). E o Natal, enquanto “fazer-se carne” da Palavra é o
começo da máxima manifestação dessa luz, cujo ápice será a ressurreição.
Durante sua vida terrena, Jesus experimentou na carne o quanto a sua luz foi
perseguida pelas trevas. Mas a ressurreição mostrou que as trevas não
conseguiram dominá-la.
Por
ser também uma síntese poetizada do percurso dinâmico da Palavra, desde a
criação até a encarnação, o prólogo do evangelho joanino compreende também,
embora implicitamente, uma síntese da história da salvação. Por isso, não
poderiam faltar referências aos personagens mais relevantes da história e da
religião de Israel. Mas o autor é muito cuidadoso nesse sentido, e cita somente
dois nomes: Moisés e João, o Batista; um legislador e um profeta. João, o
Batista, é identificado como enviado por Deus para dar testemunho da luz (vv.
6-9.15). O papel da testemunha é apontar para a luz, ajudando os outros a serem
iluminados e, por consequência, a chegarem à fé. Nesse sentido, João é síntese
de todo o profetismo bíblico que, ao longo da história, constituiu-se como a
expressão religiosa mais autêntica de Israel. Com a instituição religiosa
corrompida desde o início, por muitos séculos somente o profetismo fez a luz de
Deus resplandecer sobre o seu povo. O aparato ritualista do templo, em conluio
com a monarquia ofuscava a luz verdadeira. Por isso, por tanto tempo a luz
verdadeira não foi conhecida e nem reconhecida, apesar de nunca ter faltado o testemunho
de profetas como João Batista (vv. 10-11). Também Moisés não poderia ser
esquecido na apresentação da trajetória da Palavra-Luz. Seu papel é
reconhecido, mas colocado em seu devido lugar: por meio dele foi dada a Lei (v.
17), que tem a sua importância na história, mas até certo ponto, pois ela não
comunica graça e nem verdade, e pode ser distorcida por aqueles que se
credenciam como seus legítimos interpretes, como realmente aconteceu. Basta
olhar a história de Israel para perceber o quanto a Lei foi distorcida, sendo
mais usada para escravizar do que mesmo para libertar. Por não comunicar graça
e verdade, a Lei não gerava filhos para Deus, mas apenas servos. Só o
Cristo-Palavra gera filhos para Deus, porque somente ele reflete a luz
verdadeira do Pai. Isso porque só ele viu o Pai (v. 18), e só pode comunicar
claramente aquilo se conhece verdadeiramente.
Até
então, todas as formas de comunicação experimentadas por Deus para revelar-se
claramente à humanidade tinham sido parciais e, por isso, insuficientes (cf. Hb
1,1-2). Por isso, chegou o momento em que «a Palavra se fez carne e
habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória, glória que recebe do Pai
como Filho Unigênito, cheio de graça e de verdade» (v. 14). Esse versículo
é o ponto alto do texto e de toda a fé cristã. Para compreendê-lo bem e
perceber a verdadeira revolução que ele indica, é necessário voltar para o
início e lê-lo em paralelo com o primeiro versículo: «No princípio era
Palavra, e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus» (v. 1). A
Palavra que se fez carne é o próprio Deus. Temos aqui uma reviravolta
maravilhosa na história! Ora, ao longo da história, não faltam personagens que
agiram como se fossem deuses, que é a lógica do mundo. A ambição, o orgulho, a
sede de poder e a prepotência levam os homens a quererem ser como Deus. E o
Natal revela um movimento totalmente oposto a essa lógica: não é um homem que
se fez Deus, mas um Deus que se fez homem. E é somente por causa desse
acontecimento que podemos contemplar a glória de Deus. Antes, imaginava-se que
a glória de Deus era contemplada na Lei, no templo e, ocasionalmente, em
algumas raras manifestações a personagens privilegiados. Aqui, o evangelista
ensina que a carne humana, sinônimo de fragilidade na teologia tradicional de
Israel, é o lugar privilegiado de manifestação da glória de Deus. Por isso,
esse versículo (v. 14) pode ser considerado um dos mais revolucionários de toda
a Bíblia. A Palavra se fez carne, e nessa carne podemos contemplar a glória de
Deus em plenitude, com transparência. E conhecemos como se deu esse “fazer-se
carne” da Palavra: foi numa criança pobre, nascida em condições sub-humanas.
Essa é a maior revolução da história. É o ponto de chegada de uma longa
trajetória, anterior até mesmo à criação do mundo, e o ponto de partida de uma
nova história, que começa pelos últimos, pelos pequenos, pelo que é frágil e
marginalizado.
O Natal é, portanto, um convite atualizado para se
conhecer a Deus e aprender como se pode conhecê-lo, porque ensina, acima de
tudo, onde ele está, como ele se manifesta e qual é a expressão máxima da sua
glória: é a carne humana, inicialmente a do seu Filho Unigênito, o menino pobre
de Belém; depois, a carne de todas as pessoas que, no Filho, se tornam filhos e
filhas de Deus também. Como dizia um anônimo teólogo, o cristianismo é “a
religião do céu vazio”, porque Deus escolheu a carne humana para morar, armando
definitivamente a sua tenda.



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