23 Novembro - A humildade não é apenas guarda da pureza, mas é também segurança do precioso dom da fé. (S 358). São José Marello
EVANGELHO DO DIA
Leitura do santo Evangelho segundo São Lucas 23,35-43
Naquele tempo, 35os chefes
zombavam de Jesus dizendo: “A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de
fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido!”
36Os soldados também caçoavam dele;
aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, 37e diziam: “Se
és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!”
38Acima dele havia um letreiro:
“Este é o Rei dos Judeus”.
39Um dos malfeitores crucificados o
insultava, dizendo: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”
40Mas o outro o repreendeu,
dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? 41Para nós, é justo,
porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal”. 42E acrescentou:
“Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”.
43Jesus lhe respondeu: “Em verdade
eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso”.
Reflexão para a Solenidade de Cristo
Rei - Lucas 23, 35-43 (Ano C) 23 nov 2025
Chegamos ao trigésimo quarto domingo do tempo
comum, o último do ano litúrgico, o qual vem intitulado como Solenidade de
Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, cujo evangelho neste ano é Lucas
23,35-43. Se trata de um título, a princípio, perigoso, uma vez que a tendência
é, de imediato, imaginá-lo como um rei semelhante aos reis deste mundo e
atribuir-lhe trono, cetro, coroa e poder, como normalmente vem representado em
diversas imagens, escondendo a sua principal característica: o amor
misericordioso destinado a todos, com preferência pelos mais necessitados. Ora,
se concebermos Jesus Cristo, Rei do universo, como um homem forte, potente,
sentado em um trono ornado de ouro, com cetro na mão, ditando, julgando e
ordenando uma imensidão de serviçais, guerreando, vencendo e subjugando
inimigos, estamos imaginando o rei-messias esperado pelos judeus do seu tempo e
estamos rejeitando Jesus de Nazaré, o servo de todos, aquele que veio para servir
e não para ser servido. Infelizmente, boa parte do cristianismo acabou
caricaturando a realeza de Jesus, atribuindo-lhe os traços de rei que ele mesmo
negou possuir.
Voltemo-nos, pois para o texto bíblico, o qual
descreve Jesus crucificado e ridicularizado por aqueles que não o viam como o
rei esperado, uma vez que Ele não possuía nenhum sinal de realeza visível. O
cenário é o chamado lugar da Caveira (cf. Lc 23,33) ou gólgota. A cena descrita
é comum aos quatro evangelhos, sendo que Lucas enriquece seu relato com algumas
peculiaridades, como veremos a seguir. Infelizmente, a liturgia apresenta o
texto incompleto, omitindo a primeira parte do primeiro versículo: “O povo
permanecia lá” (v. 35a). Essa pequena omissão compromete uma compreensão mais
adequada do episódio, considerando a linha teológica de Lucas. Ele atribui um
papel de neutralidade ao povo, ao dizer que “estava lá” mas não participou do
ato violento contra Jesus. É intenção do evangelista comprometer apenas os
grupos que interagem diretamente com Jesus, insultando-o: os chefes (v. 35), os
soldados (v. 36) e os malfeitores (vv. 39-40).
Assim começa o texto proposto pela liturgia: “Os
chefes zombavam de Jesus, dizendo: ‘a outros salvou. Salve a si mesmo se, de
fato, é o Cristo de Deus, o escolhido” (v. 35). Obviamente, os chefes aqui, são
as autoridades religiosas e políticas da época, principalmente os sacerdotes e
anciãos, responsáveis diretos pela condenação e morte de Jesus. Unindo essa
atitude dos chefes à parte omissa, a presença do povo, Lucas opõe os líderes
aos liderados, enfatizando que pela atitude dos chefes, o povo inocente acaba
sofrendo graves consequências. Ao mesmo tempo, há uma crítica à passividade do
povo: quando esse se cala, os chefes ficam mais à vontade para cometerem arbitrariedades.
O segundo grupo, formado pelos soldados, representa
todo o aparato militar romano, responsável por silenciar qualquer voz que
soasse subversiva. Eram os soldados, inclusive, os responsáveis diretos pela
execução da pena. O insulto deles é semelhante ao dos chefes, pois estavam a
serviço deles, embora tenha uma conotação mais política: “Os soldados também
caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: ‘Se és o rei
dos judeus, salva-te a ti mesmo!” (vv. 36-37). Além do insulto com palavras, os
soldados o insultam também fisicamente. Se o vinho, na tradição bíblica
simboliza o amor, o vinagre é a negação do amor, o ódio. O oferecimento do
vinagre da parte dos soldados, aqui, portanto, significa a falta de amor e do
mínimo de compaixão dispensado a Jesus pelos seus algozes. É da falta de amor
que é gerada a violência e o abuso de poder. Como eram soldados romanos, não
tinham conhecimento teológico suficiente, por isso, não zombam de Jesus como
Cristo (Messias), mas apenas como rei dos judeus, ou seja, o consideravam
apenas um subversivo político, e não um blasfemo, como interpretavam as
autoridades religiosas. Enfim, tinham por base apenas a declaração irônica,
colocada sobre a cruz a mando de Pilatos, provavelmente: “Acima dele havia um
letreiro: “Este é o Rei dos Judeus”" (v. 38).
O terceiro grupo que interage com Jesus no momento
do seu suplício é composto por companheiros de destino, ou seja, pessoas que
também receberam a pena máxima da cruz, provavelmente por acusação de crime de
subversão e perturbação da ordem estabelecida. De fato, a cruz era o pior
suplício de condenação no império romano; era a pena reservada aos que
ameaçavam a “pax romana”. Somente pessoas consideradas extremamente perigosas
recebiam esta pena, como era Jesus para os poderes da época. Segundo a tradição
sinótica, “dois malfeitores foram crucificados com Jesus” (cf. Mt 27,38; Mc
15,27; Lc 23,32).
Deste dado em comum com os demais evangelhos, Lucas
dá uma cara própria ao seu texto, tornando o seu relato muito mais rico
teologicamente, passando a utilizar a técnica retórica do paralelismo
antiético, que predominou na construção de todo o seu evangelho: a apresentação
paralela de dois personagens com atitudes opostas; ele fez isso com Zacarias e
Maria, ao receberem os respectivos anúncios (cf. Lc 1,5-38), entre Marta e
Maria (cf. Lc 10,38-42), entre os dois filhos da parábola do pai misericordioso
(cf. Lc 15,11-32), entre o pobre Lázaro e o rico avarento (cf. Lc 16,19-31),
entre o fariseu e o publicano (cf. Lc 18,9-14), e agora repete o mesmo recurso
ao contrapor as atitudes dos dois malfeitores (bandidos) crucificados com
Jesus: “Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: ‘Tu não és o
Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!’. Mas o outro o repreendeu, dizendo: “Nem
sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação?” (vv. 39-40). Antes de
prosseguir, é importante um esclarecimento semântico: para os malfeitores
crucificados com Jesus, Lucas não usa um termo equivalente a ladrão, como fazem
Mateus e Marcos, mas um termo equivalente a malfeitor, delinquente ou bandido
de um modo geral (em grego: κακούργος – kakúrgos), até
porque quem praticasse o roubo ou o furto recebia também uma pena, mas não a
pena máxima, como a cruz.
Cada um dos malfeitores interpreta os
acontecimentos de maneira diferente; enquanto um deles se deixa levar pela
ideologia dominante, repetindo o insulto dos chefes e dos soldados, o outro tem
uma percepção diferente: reconhece suas culpas e a inocência de Jesus: “para
nós é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de
mal” (v. 41). Das palavras de um dos malfeitores manifestando uma confissão de
culpa, o texto passa a ser exclusivo de Lucas. A confissão de culpa é o
primeiro passo da conversão. Ora, sendo o evangelista que melhor apresenta os
traços misericordiosos de Deus em Jesus Cristo, Lucas mostra essa
característica divina também no calvário, ao acolher a súplica de misericórdia
de um dos malfeitores ou bandidos crucificados. Trata-se de mais um detalhe
próprio de Lucas, muito significativo para a sua teologia.
O malfeitor arrependido – já podemos chama-lo assim
– sentiu que, finalmente, encontrou alguém com quem pudesse contar, que olhasse
para sua miséria, criando assim uma relação íntima com Jesus, a ponto de
chama-lo pelo nome: “Jesus, lembra-te de mim quando entrardes em teu reino” (v.
42). Na tradição bíblica, chamar alguém pelo nome é sinal de intimidade, é
conhecer o outro e tê-lo como amigo. Assim, finalmente alguém percebeu a
verdadeira natureza da realeza de Jesus: um rei tão diferente dos reis deste
mundo, a ponto de não necessitar de nenhum título de honra para dirigir-se a
Ele, basta chamá-lo pelo nome que Ele responde. Assim, o malfeitor arrependido
torna-se modelo de convertido para o evangelista Lucas. Ora, a maioria dos
interlocutores de Jesus ao longo do evangelho lhe dirigiam a palavra com o
título de mestre ou senhor, incluindo os discípulos. Ninguém tinha se sentido
tão íntimo, tão amigo e companheiro de Jesus como este bandido.
Além da intimidade criada entre o malfeitor e
Jesus, merece atenção o conteúdo da súplica: “lembra-te de mim” é uma fórmula
de oração usada pelos pobres, agonizantes e perseguidos na tradição bíblica do
Antigo Testamento (cf. Sl 89,48; 106,4; Jr 15,15). Foi o único a compreender
que o Reino de Jesus não é desse mundo, pois sabia ele que, como condenado,
jamais teria espaço em um reino desse mundo, por isso, pediu que Jesus se
recordasse dele no seu reino. Portanto, o malfeitor elevou uma súplica de
confiança e mostrou capacidade para compreender que um reino diferente dos
reinos desse mundo é possível e, finalmente ele tinha encontrado, pois estava
diante de um rei que não salva a si mesmo, mas aos outros.
Ao que reconhece a verdadeira natureza da sua
realeza, Jesus a manifesta plenamente: “Em verdade, te digo, hoje estarás
comigo no paraíso” (v. 43). Essa é a única vez em que Jesus pronuncia a palavra
paraíso (em grego: παραδείσω –
paradeísso) nos evangelhos. Remete à criação e
mostra que o mundo que Deus ofereceu primeiro à
humanidade, antes do pecado entrar no mundo, Jesus oferece a um pecador ao
extremo. Outro pormenor importante da teologia lucana é que a salvação se
realiza já no hoje da história, afastando a ideia de um futurismo incerto e
utópico. De fato, o termo hoje (em grego σημερον –
semeron), é muito relevante para Lucas: aos pobres pastores é
anunciado que “nasceu hoje um salvador” (cf. Lc 2,11), na sinagoga de Nazaré,
Jesus diz que “as escrituras se cumpriram hoje” (cf. Lc 4,21); Jesus quer “permanecer
hoje na casa de Zaqueu” e diz que “hoje a salvação entrou nessa casa” (cf. Lc
19,5.9), e é “hoje” que ele quer estar com um bandido convertido.
Portanto, é com urgência que o reino de Deus é
apresentado no Evangelho de Lucas. Infelizmente, nem todos o reconhecem e o
acolhem. Na verdade, somente os pecadores, pobres e humilhados demonstram, no
decorrer do evangelho, capacidade para tal reconhecimento. Para esses, a
salvação não pode ser adiada, é necessário que aconteça logo hoje, agora. Uma
vez que a realeza de Jesus se revela na cruz, no ápice da humilhação, fica
difícil reconhece-la, de modo que, até hoje, continua sendo mal compreendida e
ensinada. O triunfalismo real alimentado por séculos pela tradição judaica
acabou sendo disseminado também entre muitos cristãos que insistem em adorar um
Cristo Rei com insígnias reais que jamais Ele aceitaria. E foi, exatamente na
cruz onde sua realeza se manifestou tão claramente ao deixar de salvar a si
para salvar a um pecador visto como caso perdido.



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