26 janeiro - Quanto tempo perdido; quantas preocupações inúteis; quanto amor próprio; quão pouco desapego das coisas que não são de Deus; quão escasso abandono no Senhor; quão pouco esforço de conformação à vontade divina; que perigosa falta de fidelidade às práticas espirituais; quanta negligência, quanto espírito interesseiro, quanta leviandade, quanta desordem de afetos!...Recomecemos, recomecemos de verdade! (L 23). São Jose Marello
EVANGELHO – Lucas 1,1-4;4,14-21
Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo segundo São Lucas
Já que muitos empreenderam narrar os
fatos que se realizaram entre nós,
como no-los transmitiram os que, desde o início, foram testemunhas oculares e
ministros da palavra,
também eu resolvi, depois de ter investigado cuidadosamente tudo desde as
origens, escrevê-las para ti, ilustre Teófilo,
para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado.
Naquele tempo, Jesus voltou da Galileia, com a força do Espírito, e a sua fama
propagou-se por toda a região.
Ensinava nas sinagogas e era elogiado por todos.
Foi então a Nazaré, onde Se tinha criado.
Segundo o seu costume, entrou na sinagoga a um sábado e levantou-Se para fazer
a leitura.
Entregaram-Lhe o livro do profeta Isaías e, ao abrir o livro, encontrou a
passagem em que estava escrito:
«O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa
nova aos pobres.
Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a
restituir a liberdade aos oprimidos
e a proclamar o ano da graça do Senhor».
Depois enrolou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-Se.
Estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga.
Começou então a dizer-lhes:
«Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».
Reflexão para o 3º domingo do Tempo
Comum
Neste terceiro domingo do tempo comum,
começamos, de fato, a leitura sequenciada do Evangelho segundo Lucas na
liturgia dominical. O texto proposto – Lucas 1,1-4; 4,14-21 – contém duas
partes: o prólogo do Evangelho (1,1-4) e o primeiro trecho do discurso
programático de Jesus na sinagoga de Nazaré (4,14-21), inaugurando a sua vida
pública e pregação. Embora separadas por três capítulos, é inegável a unidade
entre as duas partes do evangelho de hoje, no contexto da liturgia,
principalmente. Como o “Evangelho da Infância” (cf. Lc 1,5 – 2,52) e os relatos
da missão de João Batista e do batismo de Jesus (cf. Lc 3) já foram lidos
durante os tempos do advento e do natal, e o episódio das tentações será lido
na quaresma (cf. Lc 4,1-13), é justo que o evangelho de hoje tenha essa
composição (1,1-4; 14-21).
Lucas é o único evangelista que abre a sua obra com
um prólogo literário; vale lembrar que o prólogo de João (cf. Jo 1,1-18), é
exclusivamente teológico. Um prólogo é o conjunto de considerações iniciais que
antecedem o texto propriamente. Literalmente, significa “antes das palavras”
(em grego προλογος = prólogos) ou seja, é o
que antecede o escrito, e visa anunciar o plano da obra: tema, método, destinatário
e objetivos, de forma breve e objetiva. Era um elemento fundamental na
literatura greco-romana da antiguidade. Lucas escreve seu evangelho cerca de
cinquenta anos após a ressurreição de Jesus, quando já não havia mais nenhum
apóstolo vivo, as testemunhas autênticas dos acontecimentos narrados. Ele reconhece
não ser o primeiro a escrever sobre Jesus: “Muitas pessoas já tentarem
escrever a história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como nos
foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas
oculares e ministros da palavra” (1,1-2). Além das tradições orais que
circulavam nas comunidades, nessa época já haviam sido escritos o Evangelho
segundo Marcos, mais concentrado nas ações de Jesus, e um outro, de origem
desconhecida, mais focado nas palavras de Jesus, ambos utilizados por Mateus e
por Lucas.
Lucas não se dá por satisfeito com o material
existente escrito por outros, e resolve também escrever o seu: “Assim
sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o
princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo
Teófilo” (1,3). Como bom conhecedor das necessidades do seu tempo e
dos seus leitores futuros, ele reconhece a necessidade de apresentar um escrito
mais consistente, organizado e ordenado, não para contrapor, mas para reforçar
o que já era utilizado na catequese das suas comunidades, personificadas pelo
desconhecido destinatário, Teófilo. Certamente, novas dúvidas surgiam a
respeito de Jesus. O que era anunciado nas comunidades, embora sólido, pois
fora transmitido pelos apóstolos, as “testemunhas oculares”, já não era mais
suficiente. Era necessário, por isso, uma mensagem mais consistente para
Teófilo “verificar a solidez dos ensinamentos que havia recebido” (1,4).
É isso o que motiva Lucas a escrever a sua obra; a maior prova da sua
consistência é a continuidade em Atos dos Apóstolos: não basta dizer como Jesus
viveu e o que ele fez, mas também mostrar como as primeiras comunidades viveram
a sua mensagem após a ressurreição e ascensão.
A propósito de Teófilo, muito tem se discutido a
seu respeito; devido ao uso da forma de tratamento “excelentíssimo ou ilustre
(em grego: κρατιστος =
kratistós), cogitou-se que Teófilo
fosse um alto funcionário
do império romano, convertido ao cristianismo.
Considerando o nome “Teófilo” (em
grego: Θεοφιλος =
Theófilos), cujo significado é “amigo
de Deus” em grego, é
mais provável que seja um personagem fictício, no qual o evangelista projeta o leitor ideal
da sua obra, ao mesmo tempo em que faz uma crítica
velada à filosofia, tão
difusa no mundo greco-romano. Ora, filosofia significa “amor ou amizade à
sabedoria, ao saber”, e filósofo (em grego: φιλοσοφος = filósofo)
significa “amigo da sabedoria”. A
verdadeira e necessária
amizade para Lucas, portanto, não é com a sabedora grega, tão difusa na época, mas com o Deus revelado em
Jesus. Por isso, o objetivo principal de sua obra é que cada leitor e leitora
se tornem autênticos(a) “Teófilos”, ou seja, amigos(a) de Deus.
Na segunda parte do evangelho de hoje, nós temos a
inauguração solene do ministério de Jesus na sinagoga de Nazaré, em dia de
sábado. Mas, antes disso, o evangelho nos oferece outras informações
importantes: “Jesus voltou para a Galileia, com a força do
Espírito” (4,14a). Ora, no batismo, Jesus fora confirmado como
portador do Espírito Santo (cf. 3,21-22); o mesmo Espírito pelo qual fora
concebido no ventre de Maria (cf. 1,35); após o batismo, fora conduzido pelo
Espírito Santo ao deserto, onde fora tentado pelo diabo (cf. 4,1-13). Foi,
portanto, do deserto, após as tentações, que Jesus voltou para a Galileia, a
região mais pobre e explorada de Israel, onde tinha se criado, e onde inicia
sua vida pública. O mais importante aqui, para o evangelista, é mostrar que
tudo o que Jesus faz e para onde vai, é motivado pelo Espírito Santo. Embora o
episódio da sinagoga de Nazaré seja o primeiro descrito após o batismo e as
tentações, não foi a primeira pregação da vida de Jesus, pois diz o evangelista
que sua fama já tinha se espalhado: “e sua fama espalhou-se por toda a
redondeza” (cf. 4,14b), pois “Ele ensinava nas suas sinagogas e
todos o elogiavam” (4,15). Certamente, havia grande expectativa para a
pregação de Jesus em Nazaré, onde vivia sua família.
Assim, diz o texto que “Ele veio à cidade
de Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, entrou na sinagoga no
sábado, e levantou-se para fazer a leitura” (4,16). O sábado era o dia
de culto por excelência para o povo judeu. O culto na sinagoga acontecia logo
pela manhã, pois era grande a ânsia do judeu para escutar a Lei, os Profetas e
receber as bênçãos de Deus. Porém, o dia santo para o seu povo, será o dia
preferido de Jesus para criar polêmicas com os seus conterrâneos e irmãos de
religião, como mostram os evangelhos e, em especial, esse, como veremos na
liturgia do próximo domingo (cf. 4,21-30). Jesus inicia sua pregação “na
sinagoga em dia de sábado”, como também farão os seus discípulos-missionários
em Atos dos Apóstolos (cf. At 13,14; 17,1-2; etc). Porém, é na sinagoga, o
lugar de culto, onde a sua mensagem será mais rejeitada, conforme acontecerá
também com os discípulos-missionários em Atos dos Apóstolos. Assim, o
evangelista confirma Israel como destinatário primeiro da salvação, ao mesmo
tempo em que justifica a abertura aos pagãos: Israel, ou seja, os judeus,
majoritariamente, rejeitam, se fecham à Boa Nova de Jesus.
O culto da sinagoga iniciava com a proclamação do
“Shemá” (“Escuta, ó Israel: Iahweh nosso Deus...” cf. Dt 6,4),
a oração de Israel, por excelência, e depois era feita a leitura de um texto da
Lei, o ponto alto da liturgia e, em seguida, lia-se um texto dos profetas e se
fazia uma pequena homilia. Embora a estrutura fosse fixa, o seu desenvolvimento
era bastante flexível: para a leitura dos textos proféticos e a homilia,
priorizava-se pessoas de fora ou filhos da terra que moravam longe, mas se
encontravam no povoado de passagem; isso se dava, sobretudo, nos pequenos
povoados, onde a população era mais rude e carente de novidades, como Nazaré,
por exemplo; após a homilia, o pregador podia até perguntar se alguém na
assembleia teria algo a acrescentar (cf. At 13,15). Até então, Jesus era um
filho ilustre: sua fama tinha se espalhado (cf. 4,14), mas os seus conterrâneos
nazarenos ainda não conheciam sua pregação.
Como
havia muita expectativa entre os conterrâneos e parentes de Jesus para ouvi-lo,
deram-lhe a oportunidade de fazer a leitura e a pregação naquele sábado: “Deram-lhe
o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está
escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a
unção para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me para proclamar a
libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os
oprimidos, e para proclamar o ano da graça do Senhor” (4,17-19). O
texto citado por Lucas como lido por Jesus é Isaías 61,1-2, um anúncio de
salvação e consolo ao povo recém-libertado do cativeiro da Babilônia. O
primeiro objetivo do evangelista, aqui, é apresentar Jesus como cumprimento e
intérprete autêntico das Escrituras. À luz das Sagradas Escrituras, Jesus
confirma sua vocação e missão de ungido, o messias de Deus para libertar
definitivamente o seu povo.
A Boa Nova de Jesus está em continuidade com o
anúncio da salvação feito pelos antigos profetas de Israel. O segundo objetivo
é apresentar, de modo sintético, o programa de Jesus: o que ele veio anunciar e
quais são os seus destinatários primeiros. O evangelista alerta sua comunidade
a não perder de vista esse aspecto: os primeiros destinatários da mensagem de Jesus
são: os pobres, os prisioneiros, os cegos e os oprimidos; essa lista representa
os marginalizados e necessitados de um modo geral; é a essas pessoas que a
comunidade cristã deve olhar e dar atenção, em primeiro lugar. A atenção a
essas pessoas é o critério de verificação se uma comunidade eclesial é fiel ou
não ao programa de Jesus. Ora, a mensagem de Jesus comporta mudanças radicais,
enfatizadas no texto pelas imagens da “libertação dos cativos e
recuperação da vista aos cegos”; por isso, não é uma doutrina, nem um
conjunto de fórmulas, ritos e normas, mas um programa de vida que comporta
ações transformadoras.
O evangelista Lucas valoriza muito os pequenos os
detalhes e gestos de seus personagens, sobretudo de Jesus, através dos quais
enriquece a sua teologia. Por isso, observa que, “Depois fechou o
livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga
tinham os olhos fixos nele” (4,20). Sentar-se, nesse contexto, é o
gesto de quem tem autoridade para ensinar. O gesto de fechar o livro é
explicado pelo versículo seguinte, quando começa a pregação: “Então
começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes
de ouvir” (4,21); significa que a Escritura se cumpriu, o Antigo
Testamento se concluiu e, de agora em diante, a comunidade cristã tem um único
horizonte: Jesus e o seu Evangelho.
É para Jesus que a comunidade deve olhar, ou seja,
deve orientar-se somente pela sua mensagem. O “hoje”, termo tão caro para
Lucas, significa a urgência do Reino de Deus e da salvação que esse comporta.
“Os pobres, cativos, cegos e oprimidos” não podem mais esperar. É necessário,
portanto, “fixar os olhos” atentamente em Jesus, ou seja, tê-lo como única
fonte de vida, configurar-se a ele e ser também sinal e instrumento de “libertação”
e “recuperação de vista” para os “pobres, cativos, cegos e oprimidos” de hoje e
de sempre.
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