21 abril - Reforçar o vínculo da
união entre os bons, à medida que se vai afrouxando entre os maus, é uma
compensação que se tornou necessária pelos acontecimentos. (L 64). São José Marello
JOÃO 10,11-18 - REFLEXÃO
PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA
""Eu sou o bom pastor. O bom pastor
dá a vida por suas ovelhas. O assalariado, que não é pastor e a quem as ovelhas
não pertencem, vê o lobo chegar e foge; e o lobo as ataca e as dispersa. Por
ser apenas um assalariado, ele não se importa com as ovelhas. Eu sou o bom
pastor. Conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem, assim como o Pai me
conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas. Tenho ainda outras
ovelhas, que não são deste redil; também a essas devo conduzir, e elas
escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor. É por isso que o
Pai me ama: porque dou a minha vida. E assim, eu a recebo de novo. Ninguém me
tira a vida, mas eu a dou por própria vontade. Eu tenho poder de dá-la, como
tenho poder de recebê-la de novo. Tal é o encargo que recebi do meu Pai"."
Todos os anos, a liturgia do quarto domingo da páscoa se serve do capítulo décimo do
Evangelho segundo João, no qual Jesus se auto apresenta como único, verdadeiro
e bom pastor. Por isso, esse domingo foi batizado como o “domingo do
bom pastor”. Nesse ano, o texto específico é Jo 10,11-18, versículos que
contém, de fato, a apresentação de Jesus como pastor, uma vez que nos primeiros
versículos ele tinha se apresentado simplesmente como a “porta das
ovelhas” (cf. Jo 10,1-9).
A imagem de Jesus como bom pastor caiu na graça do cristianismo desde os
seus primórdios. Tornou-se clássico representá-lo como um pastor carregando uma
ovelha nos ombros, imagem bonita, mas que não corresponde exatamente ao que
Jesus fala de si no Quarto Evangelho. Ora, aquela bela imagem do pastor com a
ovelha nos ombros corresponde ao personagem de Lucas na chamada “parábola
da ovelha perdida” (cf. Lc 15,1-7). A imagem de pastor presente no
Quarto Evangelho é bem diferente: ele não carrega nem conduz ninguém nos
ombros, pois isso é sinal de dependência e privação da liberdade. O pastor verdadeiro
é aquele que aponta caminhos, é seguido porque o conhece verdadeiramente e se
deixa conhecer.
É importante recordar que a figura do pastor sempre foi muito
significativa para o povo de Israel. Desde o Antigo Testamento, essa imagem foi
associada a Deus e também aos líderes que assumiram funções de guia e comando
sobre o povo, como reis e sacerdotes, principalmente. Devido às infidelidades e
descaso desses líderes, essa imagem foi se desgastando ao longo do tempo, sendo
alvo de denúncias da parte dos profetas. Uma das denúncias mais fortes foi
aquela do profeta Ezequiel: lamentando-se dos pastores de Israel que
apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez
34,1-2), Deus toma a iniciativa de destituí-los e cuidar ele mesmo do rebanho
(cf. Ez 34,11).
Jesus atualiza a perspectiva do profeta: sendo ele o único e autêntico
pastor, estão destituídos os sacerdotes do templo e os mestres da lei. Suas
palavras tiveram grande repercussão porque mexiam com os privilégios da classe dirigente
de Israel, composta por funcionários do sagrado, ao invés de pastores
verdadeiros. A prova do incômodo causado pelas palavras de Jesus está na reação
dos líderes judeus após o seu discurso: uns diziam que ele estava endemoniado
(cf. Jo 10,20), outros queriam prendê-lo (cf. Jo 10,39). A mensagem de Jesus
foi uma ameaça aos dirigentes que apascentavam apenas a si e às suas economias,
explorando o povo ao invés de protege-lo.
Ainda a nível de contexto, é oportuno recordar que esse décimo capítulo
do Quarto Evangelho é precedido pelo episódio, também polêmico, da cura do cego
de nascença (cf. Jo 9,1-41). É clara a relação entre os dois textos: Jesus abre
os olhos para que as pessoas não se deixem enganar pelos falsos pastores, e
adquiram lucidez e conhecimento para seguirem ao único e verdadeiro pastor.
Isso era inadmissível para um sistema religioso que dominava a partir do medo.
Após apresentar-se como porta das ovelhas, eis que ele se apresenta como
pastor: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas” (v.
11). Jesus fala de modo claro, associando o discurso à práxis; diz que é o
pastor bom e porque o é: porque dá a vida por suas ovelhas. A tradução mais
justa é “Eu sou o pastor belo”; o evangelista emprega aqui um
adjetivo que corresponde mais a belo do que a bom; o belo (em grego: o`
kalo,j – hó kalós) tem um sentido mais profundo: não se trata de uma
qualidade, mas da sua própria essência. Significa que Jesus é o modelo único de
pastor. Só há um critério para verificar a bondade-beleza do pastor: a
capacidade de dar a vida por suas ovelhas. A vida, nos escritos joaninos, está
intrinsecamente relacionada ao ato de amar. Portanto, dar a vida significa amar
sem limites. Essa é a essência do pastor belo.
Após apresentar-se como pastor, Jesus apresenta a sua antítese: “O
mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar,
abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa” (v. 12). O
termo mercenário (em grego: misqwto.j – mistotós), que se tornou tão
pejorativo, equivale simplesmente a empregado, assalariado. Enquanto o pastor
cuida das ovelhas por amor, a ponto de dar a vida por elas, o mercenário cumpre
suas funções por pagamento e não chega a arriscar a vida por elas. Em situação
de perigo, ele deixa o rebanho a mercê, “pois ele é apenas um
mercenário que não se importa com as ovelhas” (v. 13). Aqui, Jesus
chega ao ponto alto de sua crítica à hierarquia religiosa de Jerusalém. Aos
sacerdotes do templo, não importava a situação do povo, eles pensavam apenas nas
ofertas que recebiam.
O lobo representa todas as forças de morte, exploração e injustiça que
ameaçam a comunidade e a humanidade de um modo geral. Ao invés de combate-lo, a
religião comandada por mercenários prefere aliar-se ou fugir dele. No caso da religião
praticada no tempo de Jesus na Palestina, havia conivência e conveniência entre
as autoridades religiosas e o império romano, de modo que mercenário e lobo
conviviam muito bem, espoliando as pobres ovelhas de Israel. É importante
lembrar que todas as denúncias feitas por Jesus às estruturas do seu tempo
foram, ao mesmo tempo, alerta para que os seus seguidores não repetissem tais
erros.
Na sequência, Jesus explicita como se dá sua relação de pastor com as
ovelhas: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me
conhecem” (v. 14). Esse conhecimento recíproco sempre foi desejado por
Deus ao longo da história: conheceu a Israel e deixou-se conhecer por ele, mas
Israel rejeitou o conhecimento (cf. Os 4,6), por isso perdeu o seu rumo.
Conhecer, na linguagem bíblica, não se trata de um ato cognitivo, mas de uma
relação íntima e recíproca, motivada pelo amor, semelhante à relação de Jesus
com o próprio Pai: “Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas
me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida
pelas ovelhas” (vv. 14-15). A intimidade de Jesus com os seus é
atestada pela sua capacidade de amar até dar a vida.
Enquanto os sacerdotes do templo pensavam relacionar-se com Deus através
do sangue de animais derramado em sacrifício, Jesus se relaciona através do
conhecimento recíproco, ou seja, através do amor. E esse modelo de relação, ele
quer universalizar: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste
redil: também a elas devo conduzir” (v. 16a). Aqui está a abertura de
horizonte. Por necessidade, o seu pastoreio começa por Israel, libertando o
povo dos mercenários (dirigentes religiosos) e enfrentando o lobo (império
romano). Mas é necessário, através da comunidade cristã, estender essa missão a
todo o universo.
Nenhuma religião pode delimitar o alcance do amor de Deus: também
aqueles que não estão no redil pertence a Deus e são amados por ele. Como diz
Jesus, também “elas escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um
só pastor” (v. 16b). A voz inconfundível de Jesus deve ressoar em todo
o universo, expressa na linguagem do amor, jamais através de proselitismos ou
ritos. Sobre o “sonho da unidade”, fazemos a seguinte observação: ao invés de
um “só rebanho e um só pastor”, a tradução correta seria “um
só rebanho, um só pastor”, sem a conjunção aditiva, como no texto grego
(mi,a poi,mnh( ei-j poimh,n – mía poímne, eis poimén), ressaltando a
unidade entre o pastor e o rebanho, a ponto de serem uma coisa só; o pastor é
rebanho, o rebanho é pastor, é essa a relação ideal na comunidade cristã, cujo
pastor único é Cristo, mas está tão unido aos seus como a videira aos ramos
(cf. Jo 15,1-5). A tradução “um só rebanho e um só pastor” foi
usada pela primeira vez por São Jerônimo, na Vulgata, e adotada pela Igreja
para ajudar a fundamentar a autoridade papal.
Jesus volta a ressaltar sua unidade com o Pai: “É por isso que o
Pai me ama, porque dou a minha vida, para depois recebê-la novamente” (v.
17). Ora, é esse amor recíproco e incondicional que fundamenta e sustenta a
relação entre Jesus e o Pai, e que é oferecido a toda a humanidade. Ao Pai,
agrada a generosidade de Jesus: ele dá a sua vida livremente; a recebe
novamente porque sabe que dar a vida por amor é, na verdade, estendê-la,
torná-la eterna. A vida eternizada pelo amor se torna indestrutível, resiste
até mesmo à morte. Por isso, de modo bastante categórico, Jesus declara: “Ninguém
tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo” (v. 18a). Não se trata de
um mero entreguismo, nem de destino, nem de acidente; é consequência de suas
escolhas, e sua grande escolha foi viver ilimitadamente o amor, e o amor
incondicional não mede consequências.
A expressão “tenho o poder de entregá-la e de recebê-la
novamente” (v. 18b) significa a plena consciência de estar amando com
um amor igual ao do Pai. Inclusive, foi isso que o próprio Pai lhe pediu: “essa
é a ordem que recebi do meu Pai” (v. 18c). Jesus recebeu do Pai a
ordem de amar até dar a vida, obedeceu porque viviam uma relação de amor
recíproco, a ponto de serem um só, como ele mesmo diz na continuação desse
discurso: “Eu e o Pai somos um” (v. 30). É isso que ele pede
aos seus seguidores de todos os tempos: viver em profundo amor entre si e com
ele, de modo que a comunidade cristã seja “um só rebanho, um só pastor”, ou
seja, uma comunidade de amor.
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