14 abril - Qualquer outro meio de defesa pode tornar-se arma de ofensa quando não sabemos fazer uso prudente dele: mas este da oração humilde e perseverante não falha nunca. (L 33). São José Marello
"Enquanto estavam contando isso, Jesus
apareceu de repente no meio deles e disse: - Que a paz esteja com vocês!
Eles ficaram assustados e
com muito medo e pensaram que estavam vendo um fantasma. Mas ele disse: - Por
que vocês estão assustados? Por que há tantas dúvidas na cabeça de vocês? Olhem
para as minhas mãos e para os meus pés e vejam que sou eu mesmo. Toquem em mim
e vocês vão crer, pois um fantasma não tem carne nem ossos, como vocês estão
vendo que eu tenho. Jesus disse isso e mostrou as suas mãos e os seus pés. Eles
ainda não acreditavam, pois estavam muito alegres e admirados. Então ele perguntou:
- Vocês têm aqui alguma coisa para comer?
Eles lhe deram um pedaço
de peixe assado, que ele pegou e comeu diante deles.
Depois disse: - Enquanto
ainda estava com vocês, eu disse que tinha de acontecer tudo o que estava
escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos livros dos Profetas e nos Salmos.
Então Jesus abriu a mente
deles para que eles entendessem as Escrituras Sagradas e disse:
- O que está escrito é que
o Messias tinha de sofrer e no terceiro dia ressuscitar. E que, em nome dele, a
mensagem sobre o arrependimento e o perdão dos pecados seria anunciada a todas
as nações, começando
Cronologicamente, esse texto situa-se ainda naquele “primeiro dia da
semana”, ou seja, o dia mesmo da ressurreição, marcado por tantas dúvidas,
tensões e medos na comunidade, desde a visita das mulheres ao sepulcro, ainda
de madrugada, até a caminhada triste dos dois discípulos para Emaús, e a
manifestação do Senhor aos Onze, como mostra o relato lido hoje.
É importante recordar que a preocupação do evangelista não é apenas
narrar fatos mas, através da sua narrativa, responder às perguntas da sua
comunidade: se Jesus de Nazaré ressuscitou mesmo, onde e como
encontrar-se com ele? Ora, a essência da pregação apostólica
pós-pascal consistia nisso: “Jesus de Nazaré, morto crucificado, ressuscitou”;
obviamente, muita gente questionava esse anúncio, pedindo provas, muitos
queriam conhecê-lo e encontrar-se com ele.
Esses questionamentos continuam sendo feitos e os Evangelhos continuam
dando as respostas. Lucas, de um modo particular, responde com mais precisão: o
Ressuscitado pode ser encontrado em qualquer situação e espaço: ele está na
estrada, caminhando com os peregrinos desiludidos (cf. 24,13-35), está na mesa
durante as refeições e no meio da comunidade reunida. Porém, para reconhecê-lo,
é necessário compreender as Escrituras e ter abertos os olhos e a mente para a
fé.
Olhemos então para o texto: “os dois discípulos contaram o que
tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão” (v.
35). O evangelista se refere aos dois discípulos de Emaús que retornaram a
Jerusalém assim que reconheceram o Ressuscitado, após uma longa caminhada
marcada pela tristeza e desilusão. Ao afirmar que o Ressuscitado foi
reconhecido ao partir o pão, ensina o evangelista que ele está no cotidiano das
pessoas, é alguém de casa, faz parte da família e é acessível.
No encontro com os Onze, os dois que tinham retornado de Emaús relataram
toda a experiência e “ainda estavam falando quando o próprio Jesus
apareceu no meio deles e lhes disse: “A paz esteja convosco!” (v. 36).
Ora, falar de Jesus é um modo de torná-lo presente; partilhar a experiência com
ele é expandir a sua presença. Nesse sentido, a comunidade reunida, mesmo
insegura, se torna o lugar privilegiado de encontro com o Ressuscitado, e o seu
lugar é o centro; por isso, ele apareceu “no meio” deles. Ora, a comunidade não
pode ter outro ponto de referência senão o Ressuscitado. A paz é oferecida como
primeiro dom; não se trata de uma simples saudação ou um mero tranquilizante,
mas de uma força reconciliadora e regeneradora.
Apesar das evidências da presença do Ressuscitado, o medo continuava, e
isso impedia que os discípulos o reconhecessem: “imaginavam ver um fantasma” (cf.
v. 37). O medo faz distorcer a imagem do Ressuscitado no meio da comunidade. De
fantasma a juiz, o Ressuscitado pode ser confundido quando a comunidade não
absorve a sua paz, nem compreende as Escrituras. Questionando a comunidade
pelas dúvidas (cf. v. 38), Jesus ensina que só reconhece o Ressuscitado quem
aceitar Jesus de Nazaré, crucificado e morto: “vede minhas mãos e meus
pés: sou eu mesmo!” (v. 39). Obviamente, com “mãos e pés”,
ele faz referência às marcas da paixão; aqui, o relato lucano se aproxima do
joanino (cf. Jo 20,24-27), refletido no domingo passado, reforçando que as
dúvidas de Tomé são, na verdade, de todos os discípulos.
O evangelista alerta que tanto o medo quanto a euforia paralisam a
comunidade e impedem sua experiência com o Ressuscitado: “Mas eles
ainda não podiam acreditar, porque estavam muito alegres e surpresos” (v.
41a); é preciso buscar um equilíbrio de modo que o Ressuscitado não passe
despercebido com sua identidade. É ele mesmo quem quer ser encontrado e
reconhecido pela comunidade; por isso, pede algo para comer (cf. v. 41b). Além
de evidenciar ainda mais a sua identidade de ser vivente, comendo ele reforça a
comunhão com os discípulos.
Tendo ele mesmo pedido, “deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o
tomou e comeu diante deles” (vv. 42-43). O Ressuscitado come o que lhe
dão, e se solidariza com todos os famintos e necessitados de pão; esse é mais
um dos significados oferecidos pelo evangelista, além da intenção de evidenciar
que o Ressuscitado é uma pessoa viva e concreta. Além de querer provar a fé,
Jesus quer também testar a capacidade de solidariedade para com os necessitados
na sua comunidade. Mais tarde, quando começaram as perseguições, o cristianismo
adotou o peixe também como um símbolo cristológico-eucarístico, pois do nome peixe
em grego (ivcqu,j - ikthís) forma-se o acróstico: “Jesus Cristo,
Filho de Deus Salvador”, e a simples pronúncia dessa palavra era
reconhecida como uma profissão de fé.
No encontro com o Ressuscitado não podem faltar refeição e catequese,
partilha do pão e da palavra; esses elementos são imprescindíveis na comunidade
cristã. Nesse episódio, há uma inversão na ordem: enquanto na cena dos
“Discípulos de Emaús” a catequese precedeu a partilha do pão, aqui acontece o
contrário, ou seja, a catequese vem depois da refeição. Assim, podemos concluir
que o evangelista não preconiza um rito, mas oferece à comunidade quais são os
seus elementos essenciais constitutivos: a partilha do pão e da Palavra.
A interpretação e compreensão adequadas das Escrituras são essenciais
para a vida da comunidade. Essa é uma das principais preocupações de Lucas, ao
longo das suas duas obras (Evangelho e Atos). Jesus é o intérprete e princípio
interpretativo de toda a Bíblia. A Lucas, diferente de Mateus, por exemplo, não
interessa colher citações avulsas, mas a Escritura em seu conjunto: Lei,
Profetas e Salmos (v. 44). Desde o princípio, a Palavra de Deus
revelada nas Escrituras aponta para o triunfo da vida e a derrocada de todos os
projetos de morte. A ressurreição de Jesus é o ponto culminante dessa
trajetória. Sem a Palavra, a comunidade perde o rumo da história.
Dos Discípulos de Emaús o evangelista diz que se abriram os olhos (cf.
24,31); dos Onze ele diz que “Jesus abriu a inteligência dos discípulos
para entenderem as Escrituras” (v. 45). A tradução mais correta
seria “abriu a mente”. Essa é também uma exigência para as
comunidades de todos os tempos: as Escrituras, se bem compreendidas, abre
mentes, olhos e horizontes, faz parte do processo de conversão contínuo pelo
qual deve passar toda comunidade cristã.
Um dos temas mais caros a Lucas, o universalismo da salvação, é
evidenciado pelo próprio Ressuscitado: “no seu nome, serão anunciados a
conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém” (v.
46). Não apenas Israel, mas todos os povos são destinatários da paz e do amor
do Ressuscitado. A reconciliação da humanidade com Deus é acessível a todas as
pessoas, de todos os lugares e em todos os tempos; ninguém pode ser excluído
dessa oferta de amor.
Surge, portanto, um novo tempo, uma nova etapa na história que começa
por Jerusalém, mas não por privilégio, e sim por necessidade. Quanta
reviravolta na história: a terra dos considerados justos é a mais necessitada
de perdão! Foi Jerusalém com suas forças de poder que matou Jesus; o mal estava
radicado lá e amparado pela religião. São as pessoas religiosas as primeiras
necessitadas de conversão.
Dos discípulos e da comunidade cristã de todos os tempos, Jesus pede
apenas uma coisa: “Vós sereis testemunhas de tudo isso” (v.
48). Em Lucas, Jesus não confere uma doutrina nem uma regra; não envia os
discípulos como pregadores e batizadores, como em Mateus, mas como testemunhas,
o que é muito mais comprometedor e exigente. Ser testemunha (em grego: ma,rtuj –
mártis) implica a
coragem de dar a vida.
Somos, portanto, hoje e sempre, interpelados pelo evangelista Lucas a
fazer um esforço constante para reconhecer o Ressuscitado em nosso meio, com
disponibilidade para a partilha e mente aberta para o conhecimento das
Escrituras. O critério de reconhecimento de uma comunidade que vive à luz do
Ressuscitado é disponibilidade dos seus membros para o testemunho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário