Tema do 4º Domingo do Tempo Comum
A liturgia do 4º Domingo do Tempo Comum garante-nos
que Deus não se conforma com os projetos de egoísmo e de morte que desfeiam o
mundo e que escravizam os homens e afirma que Ele encontra formas de vir ao
encontro dos seus filhos para lhes propor um projeto de liberdade e de vida
plena.
A primeira leitura propõe-nos - a partir da figura de Moisés - uma reflexão
sobre a experiência profética. O profeta é alguém que Deus escolhe, que Deus
chama e que Deus envia para ser a sua "palavra" viva no meio dos
homens. Através dos profetas, Deus vem ao encontro dos homens e apresenta-lhes,
de forma bem perceptível, as suas propostas.
O Evangelho mostra como Jesus, o Filho de Deus, cumprindo o projeto libertador
do Pai, pela sua Palavra e pela sua ação, renova e transforma em homens livres
todos aqueles que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da morte.
A segunda leitura convida os crentes a repensarem as suas prioridades e a não
deixarem que as realidades transitórias sejam impeditivas de um verdadeiro compromisso
com o serviço de Deus e dos irmãos.
LEITURA I - Deut 18,15-20
Leitura do Livro do Deuteronómio
Moisés falou ao povo, dizendo:
«O Senhor teu Deus fará surgir
no meio de ti, de entre os teus irmãos,
um profeta como eu; a ele deveis escutar.
Foi isto mesmo que pediste ao Senhor teu Deus
no Horeb, no dia da assembleia:
'Não ouvirei jamais a voz do Senhor meu Deus,
nem verei este grande fogo, para não morrer'.
O Senhor disse-me:
'Eles têm razão;
farei surgir para eles, do meio dos seus irmãos,
um profeta como tu.
Porei as minhas palavras na sua boca
e ele lhes dirá tudo o que Eu lhe ordenar.
Se alguém não escutar as minhas palavras
que esse profeta disser em meu nome,
Eu próprio lhe pedirei contas.
Mas se um profeta tiver a ousadia
de dizer em meu nome o que não lhe mandei,
ou de falar em nome de outros deuses,
tal profeta morrerá'».
AMBIENTE
O Livro do Deuteronómio é aquele "livro da
Lei" ou "livro da Aliança" descoberto no Templo de Jerusalém no
18º ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2 Re 22). Neste livro, os teólogos
deuteronomistas - originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no
sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios - apresentam
os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por
todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu
Israel e fez com Ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único
Povo, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer sentido as
questões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa,
após a morte do rei Salomão). A finalidade fundamental dos catequistas
deuteronomistas é levar o Povo de Deus a um compromisso firme e exigente com a
Lei de Deus, proclamada no Sinai. É um convite firme ao Povo de Deus no sentido
de abraçar a Aliança com Jahwéh e de viver na fidelidade aos compromissos
assumidos.
Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de
Moisés, pronunciados nas planícies de Moab. Pressentindo a proximidade da sua
morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de "testamento espiritual":
lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a
renovar a sua aliança com Jahwéh.
O texto que hoje nos é proposto apresenta-se como parte do segundo discurso de
Moisés (cf. Dt 4,44-28,68). Trata-se de um texto que integra um conjunto
legislativo sobre as estruturas de governo do Povo de Deus (cf. Dt
16,18-18,22). Em concreto, o nosso texto refere-se ao papel e ao significado do
profetismo.
O fenómeno profético não é exclusivo de Israel, mas é um fenómeno relativamente
conhecido entre os povos do Crescente Fértil. Entre os cananeus, os movimentos
proféticos apareciam com relativa frequência, normalmente ligados à
adivinhação, ao êxtase, a convulsões, a delírios (habitualmente provocados por
instrumentos sonoros, gritos, danças, etc.). A multiplicidade de experiências proféticas
obriga, exatamente, a pôr o problema do discernimento entre a verdadeira e a
falsa profecia... O que é que caracteriza o verdadeiro profeta? Quando é que um
profeta fala, realmente, em nome de Deus? Este problema devia pôr-se,
particularmente, no Reino do Norte, na época de Acab (874-853 a.C.) e de
Jezabel, quando os profetas de Baal dominavam. As tradições sobre o profeta
Elias (cf. 1 Re 17-2 Re 13,21) traçam esse quadro de confronto diário entre a
verdadeira e a falsa profecia.
O catequista deuteronomista refere-se, precisamente, a esta questão. Ele
apresenta, aqui, o quadro do verdadeiro profeta, oferecendo assim ao seu povo
os critérios para distinguir o verdadeiro do falso profeta.
MENSAGEM
Para os teólogos deuteronomistas, Moisés é o
exemplo e o modelo do verdadeiro profeta. O que é que isso significa?
Significa, em primeiro lugar, que na origem e no centro da vocação de Moisés
está Deus. Não foi Moisés que se candidatou à missão profética, por sua
iniciativa; não foi Moisés que conquistou, pelas suas ações ou pelas suas
qualidades, o "direito" a ser "profeta". A iniciativa foi
de Deus que, de forma gratuita, o escolheu, o chamou e o enviou em missão. Se
Moisés foi designado para ser um sinal de Jahwéh, foi porque Deus assim o quis.
A consagração do "profeta" resulta de uma ação gratuita de Deus que,
de acordo com critérios muitas vezes ilógicos na perspectiva dos homens,
escolhe aquela pessoa em concreto, com as suas qualidades e defeitos, para o
enviar aos seus irmãos.
Em segundo lugar, Moisés disse sempre e testemunhou sempre as palavras que Deus
lhe colocou na boca e que lhe ordenou que dissesse. A mensagem transmitida não
era a mensagem de Moisés, mas a mensagem de Deus. O verdadeiro profeta não é
aquele que transmite uma mensagem pessoal, ou que diz aquilo que os homens
gostam de ouvir; o verdadeiro profeta é aquele que, com coragem e frontalidade,
testemunha fielmente as propostas de Deus para os homens e para o mundo.
As palavras do profeta devem ser cuidadosamente escutadas e acolhidas, pois são
palavras de Deus. O próprio Deus pedirá contas a quem fechar os ouvidos e o
coração aos desafios que Deus, através do profeta, apresenta ao mundo.
ATUALIZAÇÃO:
A vocação profética
é uma vocação que surge por iniciativa de Deus. Ninguém é profeta por escolha
própria, mas porque Deus o chama. O profeta tem de ter consciência, antes de
mais, que é Deus quem está por detrás da sua escolha e do seu envio. O profeta
não pode assumir uma atitude de arrogância e de auto-suficiência
;ncia, mas tem de se sentir um instrumento humilde através do qual Deus age no
mundo.
Ao tomar consciência de que é apenas um instrumento
através do qual Deus age no meio da comunidade humana, o profeta descobre a
necessidade de levar muito a sério a missão que lhe foi confiada. O testemunho
profético não é um passatempo ou um compromisso para as horas vagas; está fora
de causa o cruzar os braços e deixar correr. Trata-se de um compromisso que
deve ser assumido e vivido com fidelidade absoluta e total empenho.
Se o profeta é designado para tornar presente no
meio dos homens o projeto de Deus, ele não pode utilizar a missão em benefício
próprio; não deve ceder à tentação de se vender aos poderes do mundo e pactuar
com eles, a fim de concretizar a sua sede de poder e de protagonismo, não pode
"vender a alma ao diabo" para daí tirar algum benefício, não deve
utilizar o seu ministério para se exibir, para ser admirado, para conseguir
sucesso, para promover a sua imagem e obter os aplausos das multidões. A missão
profética tem de estar sempre ao serviço de Deus, dos planos de Deus, da
verdade de Deus, e não ao serviço de esquemas pessoais, interesseiros e
egoístas.
SALMO RESPONSORIAL - Salmo 94 (95)
Refrão: Se hoje ouvirdes a voz do Senhor,
não fecheis os vossos corações.
Vinde, exultemos de alegria no Senhor,
aclamemos a Deus, nosso Salvador.
Vamos à sua presença e dêmos graças,
ao som de cânticos aclamemos o Senhor.
Vinde, prostremo-nos em terra,
adoremos o Senhor que nos criou;
pois Ele é o nosso Deus
e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho.
Quem dera ouvísseis hoje a sua voz:
«Não endureçais os vossos corações,
como em Meriba, como no dia de Massa no deserto,
onde vossos pais Me tentaram e provocaram,
apesar de terem visto as minhas obras».
LEITURA II - 1 Cor 7, 32-35
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo
aos Coríntios
Irmãos:
Não queria que andásseis preocupados.
Quem não e casado preocupa-se com as coisas do Senhor,
com o modo de agradar ao senhor.
Mas aquele que se casou preocupa-se com as coisas do mundo,
com a maneira de agradar à esposa,
e encontra-se dividido.
Da mesma forma, a mulher solteira e a virgem
preocupam-se com os interesses do Senhor,
para serem santas de corpo e espírito.
Mas a mulher casada preocupa-se com as coisas do mundo,
com a forma de agradar ao marido.
Digo isto no vosso próprio interessa
e não para vos armar uma cilada.
Tenho em vista o que mais convém
e vos pode unir ao Senhor sem desvios.
AMBIENTE
A comunidade cristã de Corinto é uma comunidade
tipicamente grega, que mergulha as suas raízes numa cultura-ambiente marcada
por grandes contradições. As diversas escolas filosóficas que existiam na
cidade (e um pouco por todo o mundo grego) tinham perspectivas muito diversas
sobre o sentido da vida e sobre a forma de chegar à felicidade e à realização
plena. As propostas de caminho apresentadas por essas escolas eram,
frequentemente, divergentes e mesmo opostas.
Um dos sectores onde se nota, particularmente, esse balançar entre caminhos
opostos, é nas questões de ética sexual. Neste âmbito, a cultura coríntia
oscilava entre dois extremos: por um lado, um grande laxismo (como era normal
numa cidade marítima, onde chegavam marinheiros de todo o mundo e onde reinava
Afrodite, a deusa grega do amor); por outro lado, um desprezo absoluto pela sexualidade
(típico de certas tendências filosóficas influenciadas pela filosofia
platónica, que consideravam a matéria um mal e que faziam do não casar um ideal
absoluto).
O desejo de Paulo é o de apresentar um caminho equilibrado, face a estes
exageros: condenação sem apelo de todas as formas de desordem sexual, defesa do
valor do casamento, elogio do celibato (cf. 1 Cor 7).
Provavelmente, os coríntios tinham consultado Paulo acerca do melhor caminho a
seguir - o do matrimónio ou o do celibato. Paulo responde à questão no capítulo
7 da Primeira Carta aos Coríntios (de onde é retirado o texto da nossa segunda
leitura). Paulo considera que não tem, a este propósito, "nenhum preceito
do Senhor"; no entanto, o seu parecer é que quem não está comprometido com
o casamento deve continuar assim e quem está comprometido não deve "romper
o vínculo" (1 Cor 7,25-28). Na perspectiva de Paulo, os cristãos não devem
esquecer que "o tempo é breve", quando tiverem que fazer as suas
opções - nomeadamente, quando tiverem que fazer a sua escolha entre o casamento
ou o celibato.
MENSAGEM
Paulo reconhece que, quem não é casado tem mais
tempo e disponibilidade para se preocupar "com as coisas do Senhor"
(vers. 32b) e para agradar ao Senhor. Quem é casado tem de atender às
necessidades da família e de dividir a sua atenção por uma série de realidades
ligadas à vida do dia a dia; quem não é casado pode responder aos desafios de
Deus e gastar a sua vida ao serviço do projeto de Deus sem quaisquer
condicionalismos ou limitações.
Paulo estará, aqui, a desvalorizar a vida conjugal e a sexualidade? Estará a
dizer que o matrimónio é um caminho a evitar, ou é um caminho que afaste de
Deus? De modo nenhum. Para Paulo, o casamento é uma realidade importante (ele
considera que tanto o casamento como o celibato são dons de Deus - cf. 1 Cor
7,7); mas não deixa de ser uma realidade terrena e efémera, que não deve, por
isso, ser absolutizada. Paulo nunca diz que o casamento seja uma realidade má
ou um caminho a evitar; contudo, é evidente, nas suas palavras, uma certa
predileção pelo celibato... Na sua perspectiva, o celibato leva vantagem
enquanto caminho que aponta para as realidades eternas: anuncia a vida nova de
ressuscitados que nos espera, ao mesmo tempo que facilita um serviço mais
eficaz a Deus e aos irmãos.
Na verdade, as palavras de Paulo fazem sentido em todos os tempos e lugares;
mas elas tornam-se mais lógicas se tivermos em conta o ambiente escatológico
que se respirava nas primeiras comunidades. Para os crentes a quem a Primeira
Carta aos Coríntios se destinava, a segunda e definitiva vinda de Jesus estava
iminente; era preciso, portanto, preocupar-se com as coisas de Deus e
relativizar as realidades transitórias e efémeras, entre as quais se contava o
casamento.
ATUALIZAÇÃO
Por detrás das afirmações que Paulo faz no texto
que nos é proposto como segunda leitura, está a convicção de que as realidades
terrenas são passageiras e efémeras e não devem, em nenhum caso, ser
absolutizadas. Não se trata de propor uma evasão do mundo e uma espiritualidade
descarnada, insensível, alheia ao amor, à partilha, à ternura; mas trata-se de
avisar que as realidades desta terra não podem ser o objetivo final e único da
vida do homem. Esta reflexão convida-nos a repensarmos as nossas prioridades, e
a não ancorarmos a nossa vida em realidades transitórias.
A virgindade consagrada, por amor do Reino, nem
sempre é um valor compreendido, à luz dos valores da nossa sociedade. Paulo,
contudo, sublinha o valor da virgindade como valor autêntico, pois anuncia o
mundo novo que há-de vir e disponibiliza para o serviço de Deus e dos irmãos. É
sinal de desprendimento, de doação, de disponibilidade e deve ser positivamente
valorizada. Aqueles que são chamados a viver dessa forma não são gente estéril
e infeliz, alheia às coisas bonitas da vida, mas são pessoas generosas, que
renunciaram a um bem (o matrimónio) em vista da sua entrega a Deus e aos
outros.
ALELUIA - Mt 4,16
Aleluia. Aleluia.
O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz;
para aqueles que habitavam na sombria região da morte
uma luz se levantou.
EVANGELHO - Mc 1, 21-28
Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo segundo São Marcos
Jesus chegou a Cafarnaum
e quando, no sábado seguinte, entrou na sinagoga
e começou a ensinar,
todos se maravilhavam com a sua doutrina,
porque os ensinava com autoridade
e não como os escribas.
Encontrava-se na sinagoga um homem com um espírito impuro,
que começou a gritar:
«Que tens Tu a ver conosco, Jesus Nazareno?
Vieste para nos perder?
Sei quem Tu és: o Santo de Deus».
Jesus repreendeu-o, dizendo:
«Cala-te e sai desse homem».
O espírito impuro, agitando-o violentamente,
soltou um forte grito e saiu dele.
Ficaram todos tão admirados, que perguntavam uns aos outros:
«Que vem a ser isto?
Uma nova doutrina, com tal autoridade,
que até manda nos espíritos impuros e eles obedecem-Lhe!»
E logo a fama de Jesus se divulgou por toda a parte,
em toda a região da Galileia.
AMBIENTE
A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf.
Mc 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o
Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais
catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a
acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a
fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação/libertação. Este
percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina em
Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é,
evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter
acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): "Tu és o Messias".
O texto que nos é hoje proposto aparece, exatamente, no princípio desta
caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Rodeado já
pelos primeiros discípulos, Jesus começa a revelar-Se como o
Messias-libertador, que está no meio dos homens para lhes apresentar uma
proposta de salvação.
A cena situa-nos em Cafarnaum (em hebraico Kfar Nahum, a "aldeia de
Naum"), a cidade situada na costa noroeste do Lago Kineret (o Mar da
Galileia). De acordo com os Evangelhos Sinópticos, é aí que Jesus se vai
instalar durante o tempo do seu ministério na Galileia. Vários dos discípulos -
Simão e seu irmão André, Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João - viviam em
Cafarnaum.
MENSAGEM
É um sábado. A comunidade está reunida na sinagoga
de Cafarnaum para a liturgia sinagogal. Jesus, recém-chegado à cidade, entra na
sinagoga - como qualquer bom judeu - para participar na liturgia sabática. A
celebração comunitária começava, normalmente, com a "profissão de fé"
(cf. Dt 6,4-9), a que se seguiam orações, cânticos e duas leituras (uma da
Torah e outra dos Profetas); depois, vinha o comentário às leituras e as
bênçãos. É provável que Jesus tivesse sido convidado, nesse dia, para comentar
as leituras feitas. Fê-lo de uma forma original, diferente dos comentários que
as pessoas estavam habituadas a ouvir aos "escribas" (os estudiosos
das Escrituras). As pessoas ficaram maravilhadas com as palavras de Jesus,
"porque ensinava com autoridade e não como os escribas" (vers. 22). A
referência à autoridade das palavras de Jesus pretende sugerir que Ele vem de
Deus e traz uma proposta que tem a marca de Deus.
A "autoridade" que se revela nas palavras de Jesus manifesta-se,
também, em ações concretas (como se a "autoridade" das palavras
tivesse de ser caucionada pela própria ação). Na sequência das palavras ditas
por Jesus e que transmitem aos ouvintes um sinal inegável da presença de Deus,
aparece em cena "um homem com um espírito impuro". Os judeus estavam
convencidos que todas as doenças eram provocadas por "espíritos maus"
que se apropriavam dos homens e os tornavam prisioneiros. As pessoas por esses
males deixavam de cumprir a Lei (as normas corretas de convivência social e
religiosa) e ficavam numa situação de "impureza" - isto é, afastadas
de Deus e da comunidade. Na perspectiva dos contemporâneos de Jesus, esses
"espíritos maus" que afastavam os homens da órbita de Deus tinham um
poder absoluto, que os homens não podiam, com as suas frágeis forças,
ultrapassar. Acreditava-se que só Deus, com o seu poder e autoridade absolutos,
era capaz de vencer os "espíritos maus" e devolver aos homens a vida
e a liberdade perdidas.
Numa encenação com um singular poder evocador, Marcos põe o "espírito
mau" que domina "um homem" presente na sinagoga, a interpelar
violentamente Jesus. Sugere-se, dessa forma, que diante da proposta libertadora
que Jesus veio apresentar, em nome de Deus, os "espíritos maus"
responsáveis pelas cadeias que oprimem os homens ficam inquietos, pois sentem
que o seu poder sobre a humanidade chegou ao fim. A da cura do homem "com
um espírito impuro" constitui "a prova provada" de que Jesus
traz uma proposta de libertação que vem de Deus; pela ação de Jesus, Deus vem
ao encontro do homem para o salvar de tudo aquilo que o impede de ter vida em
plenitude.
Para Marcos, este primeiro episódio é uma espécie de apresentação de um programa
de ação: Jesus veio ao encontro dos homens para os libertar de tudo aquilo que
os faz prisioneiros e lhes rouba a vida. A libertação que Deus quer oferecer à
humanidade está a acontecer. O "Reino de Deus" instalou-se no mundo.
Jesus, cumprindo o projeto libertador de Deus, pela sua Palavra e pela sua
ação, renova e transforma em homens livres todos aqueles que vivem prisioneiros
do egoísmo, do pecado e da morte.
ATUALIZAÇÃO
O "homem com um espírito impuro"
representa todos os homens e mulheres, de todas as épocas, cujas vidas são
controladas por esquemas de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de medo,
de exploração, de exclusão, de injustiça, de ódio, de violência, de pecado. É
essa humanidade prisioneira de uma cultura de morte, que percorre um caminho à
margem de Deus e das suas propostas, que aposta em valores efémeros e
escravizantes ou que procura a vida em propostas falíveis ou efémeras. O
Evangelho de hoje garante-nos, porém, que Deus não desistiu da humanidade, que
Ele não Se conforma com o facto de os homens trilharem caminhos de escravidão,
e que insiste em oferecer a todos a vida plena.
Para Marcos, a proposta de Deus torna-se realidade
viva e atuante em Jesus. Ele é o Messias libertador que, com a sua vida, com a
sua palavra, com os seus gestos, com as suas ações, vem propor aos homens um
projeto de liberdade e de vida. Ao egoísmo, Ele contrapõe a doação e a
partilha; ao orgulho e à auto-suficiência, Ele contrapõe o serviço simples e
humilde a Deus e aos irmãos; à exclusão, Ele propõe a tolerância e a
misericórdia; à injustiça, ao ódio, à violência, Ele contrapõe o amor sem
limites; ao medo, Ele contrapõe a liberdade; à morte, Ele contrapõe a vida. O
projeto de Deus, apresentado e oferecido aos homens nas palavras e ações de
Jesus, é verdadeiramente um projeto transformador, capaz de renovar o mundo e
de construir, desde já, uma nova terra de felicidade e de paz. É essa a Boa
Nova que deve chegar a todos os homens e mulheres da terra.
Os discípulos de Jesus são as testemunhas da sua
proposta libertadora. Eles têm de continuar a missão de Jesus e de assumir a
mesma luta de Jesus contra os "demónios" que roubam a vida e a
liberdade do homem, que introduzem no mundo dinâmicas criadoras de sofrimento e
de morte. Ser discípulo de Jesus é percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu
e lutar, se necessário até ao dom total da vida, por um mundo mais humano, mais
livre, mais solidário, mais justo, mais fraterno. Os seguidores de Jesus não
podem ficar de braços cruzados, a olhar para o céu, enquanto o mundo é
construído e dirigido por aqueles que propõem uma lógica de egoísmo e de morte;
mas têm a grave responsabilidade de lutar, objetivamente, contra tudo aquilo
que rouba a vida e a liberdade ao homem.
O texto refere o incómodo do "homem com um
espírito impuro", diante da presença libertadora de Jesus. O pormenor
faz-nos pensar nas reações agressivas e intolerantes - por parte daqueles que
pretendem perpetuar situações de injustiça e de escravidão - diante do
testemunho e do anúncio dos valores do Evangelho. Apesar da incompreensão e da
intolerância de que são, por vezes, vítimas, os discípulos de Jesus não devem
deixar-se encerrar nas sacristias, mas devem assumir corajosamente e de forma
bem visível o seu empenho na transformação das realidades políticas,
económicas, sociais, laborais, familiares.
A luta contra os "demónios" que desfeiam
o mundo e que escravizam os homens nossos irmãos é sempre um processo doloroso,
que gera conflitos, divisões, sofrimento; mas é, também, uma aventura que vale
a pena ser vivida e uma luta que vale a pena travar. Embarcar nessa aventura é
tornar-se cúmplice de Deus na construção de um mundo de homens livres.
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