04 Agosto - Concedamos sempre a vitória a Deus, mesmo quando
isso repugna ao nosso amor próprio. E, se nem sempre podemos sentir nisso
aquela doçura e aquela paz que o sacrifício cumprido traz consigo, supra a isto
a fé e, voltando o nosso olhar para o Céu, exclamemos: Paraíso! Paraíso! (S 234). São Jose Marello
Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo segundo São João
Naquele tempo,
quando a multidão viu
que nem Jesus nem os seus discípulos estavam à beira do lago,
subiram todos para as barcas
e foram para Cafarnaum, à procura de Jesus.
Ao encontra- lo no outro lado do mar, disseram-Lhe:
«Mestre, quando chegaste aqui?»
Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
vós procurais-Me, não porque vistes milagres,
mas porque comestes dos pães e ficastes saciados.
Trabalhai, não tanto pela comida que se perde,
mas pelo alimento que dura até à vida eterna
e que o Filho do homem vos dará.
A Ele é que o Pai, o próprio Deus,
marcou com o seu selo».
Disseram-Lhe então:
«Que devemos nós fazer para praticar as obras de Deus?»
Respondeu-lhes Jesus:
«A obra de Deus
consiste em acreditar n'Aquele que Ele enviou».
Disseram-Lhe eles:
«Que milagres fazes Tu,
para que nós vejamos e acreditemos em Ti?
Que obra realizas?
No deserto os nossos pais comeram o maná,
conforme está escrito:
'Deu-lhes a comer um pão que veio do céu'».
Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Não foi Moisés que vos deu o pão do Céu;
meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do Céu.
O pão de Deus é o que desce do Céu
para dar a vida ao mundo».
Disseram-Lhe eles:
«Senhor, dá-nos sempre desse pão».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu sou o pão da vida:
quem vem a Mim nunca mais terá fome,
quem acredita em Mim nunca mais terá sede».
Enquanto Jesus se
refugiou para não alimentar os anseios triunfalistas e interesseiros da
multidão, essa o procurou até encontra-lo, já na outra margem do mar ou lago,
na cidade de Cafarnaum, como mostra o texto: “Quando a multidão viu que
Jesus não estava ali, nem os seus discípulos, subiram ás barcas e foram à
procura de Jesus, em Cafarnaum” (v. 24). Embora Jesus mesmo tenha se
afastado, era compreensível a ânsia da multidão querendo estar ao seu redor,
uma vez que essa é a mesma multidão que padecia, abandonada como ovelha sem
pastor, de quem Jesus sentiu compaixão (cf. Mc 6,34). Diante da multidão
abandonada, Jesus agiu como pastor e guia, ensinando o dom da partilha como
primeiro meio de superação da crise material pela qual passava. Porém, Jesus se
preocupava com as reais intenções da multidão à sua procura e não queria
alimentar falsas e ilusórias expectativas.
Ao encontrar Jesus, a
multidão interage com ele, pela primeira vez: “Quando o encontraram no
outro lado do mar, perguntaram-lhe: “Rabi, quando chegaste aqui?” (v.
25). A pergunta em si é pouco significativa e carente de profundidade, mas
muito importante porque abre caminho para uma interação cada vez maior entre o
Mestre – Rabi, em hebraico – e o povo. Ao dirigir essa pergunta, a multidão
consegue ver Jesus como alguém acessível, o que poderia ser o início de uma
nova compreensão a seu respeito. De fato, essa é a primeira vez que a multidão
fala direta e abertamente com Jesus. Ao considera-lo mestre, abre-se a
possibilidade para o nascimento de um novo discipulado. De fato, fazia parte da
pedagogia de Jesus gerar discípulos e discípulas a partir das multidões
anônimas.
À pergunta da
multidão, “Jesus respondeu: ‘Em verdade, em verdade, eu vos digo:
estais me procurando não porque vistes os sinais, mas porque comestes pão e
ficastes satisfeitos” (v. 26). Com bastante clareza e objetividade,
Jesus expõe as intenções da multidão lhe procurar. Não se tratava de
reconhece-lo e aceita-lo como aquele que Deus enviou ao mundo para salvar e dar
vida em abundância (cf. Jo 3,16; 10,10), mas de querer perto de si alguém que
fornece pão gratuitamente. Jesus sabia que estava sendo procurado pelo que
tinha feito, e não pelo que realmente era. Porém, não desperdiçou a ocasião,
mas aproveitou para iniciar uma ampla e profunda catequese, recordada pelo evangelista
João como essencial para a sua comunidade e para a comunidade cristã de todos
os tempos.
Cercado por uma
multidão saciada recentemente por poucos pães e peixes, mas já faminta de novo,
Jesus a convida a buscar algo muito maior e mais eficaz: “Esforçai-vos
não pelo alimento que se perde, mas pelo alimento que permanece até a vida
eterna, e que o Filho do Homem vos dará. Pois este é que o Pai marcou com seu
selo” (v. 27). Esse convite-imperativo se assemelha muito ao que Jesus
já tinha feito à mulher samaritana que buscava água no poço de Jacó; ali, Jesus
falara que a água daquele poço saciava por alguns momentos e, embora
necessária, beber dela não era suficiente para o ser humano viver saciado. Por
isso, ele falou de uma água que saciava para sempre (cf. Jo 4,1-42). Aqui, com
a multidão, ele faz praticamente o mesmo: convida a alimentar-se com um
alimento que não se perde, mas que permanece até a vida eterna. Esse alimento
só pode ser dado por ele mesmo, pois é ele o Filho do Homem, marcado pelo Pai
com o seu selo, o Espírito Santo e o amor que os une.
Com o sinal da partilha
dos pães, Jesus tinha ensinado a multidão a superar, por si mesma, as suas
dificuldades, principalmente o problema da fome. Com os pães e peixes
apresentados pelo menininho, ficou a lição da partilha e solidariedade que
brota dos pequenos. Aquele gesto poderia ser feito sem a presença física de
Jesus, por isso, ele via como desnecessária a busca da multidão por algo que
ela mesma era capaz de fazer. Daí, o convite para buscar algo mais profundo e
não menos necessário: o alimento para uma vida plena, com sentido e dignidade
plenos, a vida eterna, imune até mesmo à morte. O pão que nutre para a vida
eterna, de fato, só pode ser dado por Jesus, porque é ele mesmo na inteireza do
seu ser. Alimentar-se desse pão é assumir na concretude da vida o estilo de
Jesus, fazendo escolhas semelhantes às suas, amando com um amor à sua maneira.
É isso que gera eternidade de vida, pois, uma vida autêntica assim não pode ser
destruída nem mesmo pela morte.
As palavras de Jesus
geraram reflexão na multidão, e um desejo de aprofundamento, embora essa ainda
estivesse presa à teologia retributiva da lei: “Então perguntaram: “Que
devemos fazer para realizar as obras de Deus?” (v. 28). A pergunta
sobre “o que fazer” é típica da mentalidade judaica, de quem foi educado para
fazer e não para ser. Fazer obras para merecer algo é negar a salvação como dom
de Deus. Por isso, a resposta de Jesus é categórica: “A obra de Deus é
que acrediteis naquele que ele enviou” (v. 29). Embora fosse uma
característica das comunidades paulinas, parece que a dicotomia entre fé e
obras estava presente também na comunidade joanina. Pelo menos é isso que esse
trecho revela. A resposta Jesus esclarece que não se trata de um fazer, mas de
acreditar nele. É claro que aquilo que se deve fazer é importante, mas isso
deve partir de uma adesão livre e consciente, e não de uma mera imposição
legal. A vida cristã é marcada pelo agir, mas não porque há uma regra que
determine, mas sim porque quem dá adesão a Jesus, pela fé, é motivado a agir
como ele, servindo, sanando dores e feridas, sobretudo, dos mais necessitados.
Na continuidade da
interação entre Jesus e a multidão, da qual surgirá a grande catequese
eucarística, a qual será continuada nos próximos domingos, percebemos a
curiosidade e o desejo da multidão em aderir à proposta de Jesus, e ao mesmo
tempo os entraves ideológicos de uma religião conservadora, ritualista e
legalista, como era o judaísmo da época. Por isso, a exigência de sinais e
prodígios, e a comparação com o passado: “Eles perguntaram: “Que sinal
realizas, para que possamos ver e crer em ti? Que obra fazes? Nossos
pais comeram o maná no deserto, como está na Escritura: ‘Pão do céu deu-lhes a
comer” (vv. 30-31). O evangelista mostra, com isso, a sua preocupação
com a comunidade que necessita ver a realização de sinais para crer. Isso é
impor condições, o que faz tornar secundário aquilo que é essencial: o amor
gratuito e incondicional de Deus, ou seja, a graça. Catequizados pelas
narrativas portentosas do Pentateuco – a Lei/Torah – as quais exaltam
exageradamente os atos de Moisés, as pessoas tinham dificuldades de assimilar e
aceitar que Deus pudesse se revelar na simplicidade de Jesus. A menção à
experiência do deserto e aos pais que lá comeram o pão, o maná, evidencia a
denúncia que o evangelista mostra de como o apega às tradições podem bloquear a
comunidade de sentir a graça e o amor vivificante e gratuito de Deus revelado
em Jesus.
Jesus responde de modo
categórico: “Em verdade, em verdade vos digo, não foi Moisés quem vos
deu o pão que veio do céu. É meu Pai que vos dará o verdadeiro pão do céu, pois
o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (v.
32-33). A fórmula “em verdade, em verdade” (em grego: avmh.n avmh.n –
amén, amén) sempre introduz um ensinamento de fundamental importância. E a
distinção entre Jesus e todos os personagens do Antigo Testamento é muito
importante e indispensável para a sobrevivência da comunidade cristã. Jesus
esclarece que, na verdade, até mesmo aquele pão comido no deserto pelos
antepassados já era dom de Deus, e não obra de Moisés; e aproveita para
apresentar a sua novidade, como o verdadeiro “pão de Deus”, o
que continua despertando curiosidade e interesse na multidão que pediu: “Senhor,
dá-nos sempre desse pão” (v. 34), assim como a samaritana tinha pedido
a água eterna.
Jesus percebe que o
caminho estava preparado para iniciar a sua grande catequese eucarística: “Eu
sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim nunca
mais terá sede” (v. 35). De doador de pão que alimenta por
poucas horas, Jesus se apresenta como o próprio pão que alimenta para a vida
toda. Aceitar essa revelação implica criar intimidade com ele, deixar-se
alimentar pela sua vontade e, consequentemente, ter toda a vida conduzida
conforme o seu modo de viver. Aqui está o início do grande discurso eucarístico
de Jesus no Quarto Evangelho, o qual será continuado na liturgia dos próximos
domingos.
Impressiona a pedagogia de Jesus: de uma realidade material e efêmera, o pão partilhado que alimentou a multidão, ele eleva o seu auditório ao conhecimento de algo muito mais profundo, que é o dom da sua pessoa como enviado do Pai para, nele, o mundo todo ter vida em abundância. Para isso, a comunidade deve tê-lo como único centro e referência a ser seguida. Se a eucaristia dominical, e até diária, não leva a essa centralidade, não passa de uma versão nova do maná comido pelos antigos israelitas no deserto. A eucaristia alimenta para a vida eterna quando seus partícipes aderem à maneira de viver de Jesus.
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