20 novembro – Ter cuidado com as palavras que se dizem parece pouca coisa, mas
ao invés é uma grande virtude. (S 197). São Jose Marello
Leitura do santo Evangelho segundo São Lucas 23,35-43
Naquele tempo, 35os chefes zombavam de
Jesus dizendo: “A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o
Cristo de Deus, o Escolhido!”
36Os
soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, 37e diziam: “Se és o rei dos
judeus, salva-te a ti mesmo!”
38Acima
dele havia um letreiro: “Este é o Rei dos Judeus”.
39Um
dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: “Tu não és o Cristo?
Salva-te a ti mesmo e a nós!”
40Mas
o outro o repreendeu, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma
condenação? 41Para
nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de
mal”. 42E
acrescentou: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”.
43Jesus
lhe respondeu: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no
Paraíso”.
Meditação:
Como é de costume na Igreja Católica, hoje, o
último domingo do Ano Litúrgico, celebra-se a festa de Nosso Senhor Jesus
Cristo, Rei do Universo. A festa foi estabelecida na época dos
governos totalitários nazistas, fascistas e comunistas, nos anos antes da
Segunda Guerra, para enfatizar que o único poder absoluto é de
Deus. Suas origens são muito discutíveis. Contudo, em todo caso, os
textos da liturgia desta festa mostram a maneira peculiar como Cristo seria
“Rei”.
Convém lembrar em que consistiam as esperanças messiânicas do povo judeu no
tempo de Jesus: uns esperavam um novo rei, ao estilo de Davi, tal como é
apresentado na primeira leitura de hoje. Outros, esperavam um dirigente militar
que fosse capaz de derrotar o poderio romano; outro esperavam um novo Sumo
Sacerdote, que purificaria o Templo. Nos três caos, esperava-se um Messias
triunfante e poderoso.
O Evangelho nos apresenta como Jesus Cristo reina: não a partir de um trono
imperial, mas a partir da cruz dos rebeldes. A rebelião de Jesus é a mais
radical de todas: pretende, não somente eliminar um tipo de poder (o romano ou
o sacerdotal) para substituí-lo por outro com outro nome e em contraposição à
lógica de dominação e violência (que era o que correspondia às expectativas
judaicas).
Podemos dizer que Jesus é o anti-modelo de rei dos sistemas opressores: não
quer dominar as pessoas, mas promover, convocar, suscitar o poder de cada ser humano,
de modo que cada uma e cada um de nós assumamos responsavelmente o peso e a
alegria de nossa liberdade.
Durante toda a sua atividade pública, Jesus falava do seu Reino e o apresentou
como uma pedra preciosa e um tesouro num campo: bens preciosos escondidos; o
que torna bastante interessante e desafiadora a busca deste reino, e não
impossível a sua descoberta para quem o procura.
O tesouro, obviamente, é o próprio Jesus; e, no Evangelho de hoje, vemos
claramente como este tesouro está escondido, pois, é preciso ver com os olhos
da fé para entender que um homem pendurado numa cruz, que sofre por horas a
condenação à morte com uma das penas mais humilhantes, parecendo nada mais que
um derrotado, um perdedor, rejeitado e desprezado, seja verdadeiramente um Rei.
Para a lógica do mundo, isto é um absurdo.
Esta lógica é a dos chefes judaicos. Enquanto o povo observava tudo aquilo com
grande dificuldade de compreensão, os chefes do povo caçoavam de Jesus,
dizendo: “a outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de
Deus, o escolhido!”; mas, no fundo, não acreditavam naquilo que diziam, por
isso mesmo, o provocavam e o insultavam.
Também os soldados faziam algo semelhante, mas como não eram judeus, até o
chamavam de “rei dos judeus”, e pediam que ele se salvasse por si só. Pediam
para que ele mostrasse o seu poder. Até mesmo a escrita colocada sobre a cruz:
“este é o rei dos judeus”, era uma maneira de ofensa.
Nesta mesma direção, um dos malfeitores que
estava sendo crucificado junto com Jesus, o insultava pedindo com ironia pra
que Jesus salvasse a si mesmo e a eles também, os dois malfeitores.
Realmente, a cruz põe uma grande interrogação sobre toda a obra precedente de
Jesus, pois parece desmentir claramente tudo aquilo que ele fez e disse. Uma
pessoa que está pendurada numa cruz preste a morrer, como pode salvar a outros?
Quem depende da sua ajuda, vendo aquela cena, só poderia rir, encontrar uma
outra ajuda ou se desesperar. É uma imagem bem diferente da que temos de rei na
nossa mente. E agora?
Aparece, então, uma última fala que parece até um milagre. Pelo menos um dos
presentes, diretamente envolvido na situação, já que também está sendo
crucificado, compreende estar pertinho do tesouro da sua vida.
É o outro malfeitor, que nós o chamamos “bom
ladrão”, o qual consegue compreender aquele tesouro de graça, mesmo só nos
últimos momentos de sua vida.
Ele reconhece que aquele homem crucificado, que não
desce da cruz, mas morre nela, é o seu Rei salvador. Ele tem fé
Ele está convencido de que Jesus não fez nada de mal e por isso, não merece morrer; e, que, por isso, Jesus não acaba com a morte, mas que é através dela que ele entrará no seu reino.
Assim, Jesus, com um último “decreto real” afirma, e assegura ao malfeitor que
pediu o seu amor que ele provará da alegria do seu reino: “em verdade eu te
digo, ainda hoje estarás comigo no paraíso”.
Jesus entrou no paraíso com um malfeitor, que na cruz conseguiu a fé. Que
imagem forte! É uma imagem como esta que nos conscientiza claramente que nunca
devemos condenar ninguém, nem a nós mesmos, mas sempre estar dispostos a
aceitar o tesouro de Deus: o seu amor incondicional por nós.
Na cruz, a obra de Jesus chega ao ponto mais alto. O crucificado mostra não ser
um rei que garanta o bem estar terreno. Não salvou a si mesmo da cruz. Não nos preserva
nem das enfermidades nem da morte.
O seu poder refere-se a nossa vida com Deus. Jesus salva da queda do
afastamento de Deus e reconduz à comunhão com ele. Quem busca isto nele, será
salvo por ele, mesmo que seja um malfeitor. A festa de Cristo Rei, é a festa do
deste amor que se doou por toda a humanidade.
Reflexão Apostólica:
Hoje, celebramos a solenidade
de Cristo, Rei. Serve de preâmbulo ao tempo do Advento ou de preparação para o
nascimento de Jesus. O Natal é uma pequena páscoa e se deve festejar como
recordação da ação salvadora de Jesus, manifesta já desde suas mais humildes
origens.
Que melhor preâmbulo que
venerar hoje o rei que vem, não como os déspotas e tiranos que dominam pela
força, repressão e terror, mas como o rei pacífico que para reinar nasceu e
veio ao mundo (Jo 18,37); a cujos pés Deus submeteu tudo (1Cor 15,27); que foi
coroado de glória e honra. (Hb 2,9) e se senta em seu trono para renovar todas
as coisas (Ap 21,5).
Nos dias de hoje, em que
milhões padecem as conseqüências de um novo tipo de totalitarismo disfarçado, o
do poder econômico inescrupuloso, torna-se atual a inspiração original da festa
– que Deus é o único Absoluto.
No mundo que não é ateu, mas idolátrico, pois presta culto ao lucro, a festa de hoje nos desafia para que revejamos as nossas atitudes e ações concretas – para descobrir o que é para nós, na verdade, o valor absoluto das nossas vida.
Em uma sociedade onde
freqüentemente o nome de Deus é invocado para justificar regimes repressivos
fundamentalistas, ou sistemas imperialistas que abusam do nome “cristão” para
se justificar, a festa nos lembra do verdadeiro sentido do Reino de Deus.
Foi exatamente por ter semeado
este Reino, na contramão da sociedade de então, que Jesus devia morrer – ou
melhor, ser matado, o que é diferente.
Todos os evangelhos mostram, cada um da sua maneira, que quem matou Jesus não foi o povo, mas um conluio dos chefes religiosos, políticos e econômicos . É importante entender o que isso significa, pois se Jesus foi assassinado, houve algum motivo, e houve alguém que o matasse.
Os sumos sacerdotes eram, no
tempo de Jesus, todos nomeados pelos romanos, dentro do partido dos saduceus, o
partido da elite jerosalemita, donos de terras e do comércio, e chefes do
Templo. E o Templo funcionava como Banco Central, centro de arrecadação
de impostos, e lugar de câmbio monetário, uma vez que não se aceitava nele a
moeda corrente.
Jesus, portanto, foi assassinado pelo poder político, econômico e religioso, coniventes com o poder imperialista, representado por Pilatos. Pois o Reino de Deus se opõe frontalmente com qualquer reino opressor, como era o de Roma.
O texto de hoje usa a ironia para demonstrar a verdadeira identidade de
Jesus. Lucas faz isso através do uso de títulos por ele – títulos usados
como gozação, mas que de fato que descreviam a sua pessoa e missão – “o Messias
de Deus” "o Escolhido” o “Rei dos judeus”.
Enquanto o povo fica quieta contemplando a cena (v35), os detentores do poder, chefes e soldados, zombam de Jesus. Mas não sabem que a sua zombaria expressa a verdade sobre ele, que eles, opressores, são incapazes de entender. Ao contrário, quem entendeu era o condenado que costumamos chamar “o bom ladrão”.
Ele expressa a esperança básica de todos os sofridos, rejeitados e excluídos
desse mundo quando pede com fé “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres como
rei” (v 42). É o grito que expressa a esperança última dos sofredores, a
vitória do bem sobre o mal, e a instauração do reino de Deus, de justiça,
fraternidade e paz.
A realidade vivida por Jesus continua hoje. O seguimento dele, na
construção de um Reino de justiça e paz, do shalom de Deus, necessariamente vai
entrar em conflito com os reinos que dependem da exploração e da
injustiça.
Normalmente, esses poderes primeiro vão tentar cooptar a Igreja, para que, em
lugar de ser voz profética diante das injustiças, se torne porta-voz dos
valores desses reinos.
Não faltarão incentivos, financeiros e outros, para que as Igrejas caiam nesta
cilada. Por isso, como nos advertiram os textos nos últimos domingos, é
mister ficarmos sempre vigilantes, para que possamos verifiquar se a
nossa vida prática está mais de acordo com o Reino de Deus ou o reino de
Pilatos.
Jesus traz a grande crise da história. Diante da verdade, que é Ele,
todos têm que se posicionar. Ele, como todo profeta, não causa a divisão,
mas desmascara a divisão que existe dentro da sociedade, a divisão entre o bem
e o mal, entre um projeto da morte e um projeto da vida, uma divisão que
permeia todos os elementos da sociedade.
Diante dele, não há lugar para meio-termo - todos têm que optar. Por
isso, a nossa festa de hoje, longe de ser algo triunfalista, nos desafia para
que façamos um exame de consciência – tanto individual como eclesial e
comunitário - para verificar se o nosso Rei é realmente Jesus, ou se, mesmo
duma maneira disfarçada, continua sendo Pilatos!
Um dos grandes psicólogos do século XX, Erich Fromm, propõe, em seu livro O
medo da liberdade, que diante da angustia que produz no ser humano a
consciência de estar separados do resto da criação, adotamos duas atitudes
igualmente patológicas: dominar os outros e buscar alguém para dele depender
entregando-lhe nossa liberdade.
Em ambos os casos, as pessoas buscam, através destes mecanismos, dissolver essa
barreira que nos separa das outras pessoas e do resto do universo. O pecado
fundamental do ser humano é, segundo isto, um pecado de poder mal administrado,
mal assumido.
É essa a origem de todos os outros pecados: a avareza, que conduz a uma ordem
econômica injusta; a soberba, que nos impede ver com clareza nossos erros e
pecados; a mentira que nos leva a manipular ou a deixar-nos manipular; a
luxuria, o sexo utilizado como instrumento de poder para “possuir”, oprimir; o
medo, que nos impede de levantar e caminhar sobre nossos próprios pés.
Emaranhados nessas armadilhas do poder a que conduz nosso “medo da liberdade”,
quando um regime opressor dá qualquer sinal se torna insuportável, buscamos
como derrotá-lo para substitui-lo por outro que funcione sobre a mesma lógica.
Essa é a lógica que Jesus desarticula de forma total e radical.
Quando no Getsemani acodem os soldados e as turbas “da parte dos sumos
sacerdotes e anciãos do povo” (Mt 26, 47) para prender Jesus, ele não recorre à
violência de nenhum tipo. Jesus se nega a ser coroado rei ao estilo do “mundo”,
logo depois da multiplicação dos pães ou peixes (Jo 6,15). A tentação do poder,
entendido ao estilo dos sistemas opressores, persegue a Jesus desde o deserto
até a cruz.
E do deserto até a cruz Jesus rejeita este modelo, denuncia com toda clareza
que isto procede do maligno, do “príncipe deste mundo”, não e cai em suas
armadilhas. O custo desta resistência, valente e lúcida de Jesus, é a morte.
Na cruz, Jesus derrota, total e radicalmente, o poder do mal concebido como
violência e opressão, por uma parte, e como dependência, submissão e alienação
por outra. Desse modo é que inaugura um novo tipo de relacionamento entre as
pessoas e com o universo inteiro: um relacionamento baseado no respeito mútuo,
na harmonia, na coragem, a fim de assumir o peso da própria liberdade
responsável.
Os evangelhos nos mostram com clareza o motivo pelo qual Jesus nos reconcilia
com o Pai: não porque esse Deus, pai e mãe, seja um deus rancoroso, mas porque
havíamos perdido o rumo da autêntica unidade com Ele e com o universo inteiro.
Esse retorno à unidade com Deus não aconteceu por medo da existência, nem por
meio de posturas de poder (dominante ou dependente), mas superando nossos
medos, apresentando-nos tal como somos diante de Deus, em total pobreza de
espírito, sem máscaras protetoras que impediam de ver seu rosto.
Nós cristãos proclamamos que Cristo é o alfa e o ômega dos tempos e Senhor da
Historia. Porém, e sobretudo, que seu senhorio é o de quem liberta de toda
forma de opressão e submissão, que nos dá a liberdade de Espírito, que nos
devolve a filiação divina obscurecida por nossos medos, debilidades e pecados.
Assim o Cristo é um anti-Rei aos olhos do “mundo”. É o Cordeiro imolado (Ap
5,12) aquele que nos reconcilia com Deus e nos leva, não de regresso ao Paraíso
perdido, mas à utopia da Nova Jerusalém, onde se haverá de adorar somente a
Deus esse que liberta, que nos coloca em pé!
Lamentavelmente, quantas vezes em nossa vida eclesial reproduzimos os modelos
de “reinado” do mundo e não os de Deus
O modelo de “reinado” apresentado como o “Cordeiro imolado” nos interpela e
chama à conversão. Não é necessário nem conveniente sublinhar a “realeza” de
Jesus, se isso significa tergiversar seu autêntico e efetivo projeto de vida.
Causa dano, sobretudo aos mais oprimidos, apresentar essa imagem monárquica e
principesca de um Jesus que, na verdade, dedicou toda sua vida e suas energias
para desmascarar e lutar contra esse tipo de estrutura.
A solenidade de Cristo Rei nos convida a descobrir o valor da unção real,
sacerdotal e profética para a defesa do projeto de Jesus.
Propósito:
Ó Deus, nosso Pai, que enviaste Jesus Cristo para que
anunciasse a todos o teu desejo de renovar totalmente o mundo, contaminado pelo
pecado; nós te pedimos que ao proclamá-lo Rei não nos impeça de ver que o
verdadeiramente importante é construir com ele e como ele, seguindo seus
passos, o teu Reino.
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