31 MAIO - Que a Mãe Santíssima nos guarde sempre debaixo do seu manto! (L 17). São jose Marello
Leitura do santo Evangelho segundo São Lucas 1,39-56
"Naqueles dias, Maria
partiu apressadamente... Ela entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel. Quando
Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou de alegria em seu ventre, e
Isabel ficou repleta do Espírito Santo. Com voz forte, ela exclamou:
"Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Como
mereço que a mãe do meu Senhor venha me visitar? Logo que a tua saudação
ressoou nos meus ouvidos, o menino pulou de alegria no meu ventre. Feliz aquela
que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido!".
Maria então disse: "A minha alma engrandece o Senhor, e meu espírito se
alegra em Deus, meu Salvador, porque ele olhou para a humildade de sua serva.
Todas as gerações, de agora em diante, me chamarão feliz, porque o Poderoso fez
para mim coisas grandiosas. O seu nome é santo, e sua misericórdia se estende
de geração
Todos os anos, na solenidade da assunção de Maria, a liturgia propõe
para o evangelho o texto de Lucas 1,39-56, trecho que compreende o episódio da visitação
de Maria à sua parenta Isabel, e o cântico do Magnificat. Nesse
cântico, que Lucas põe nos lábios de Maria, está a síntese da história da
salvação, cujo ápice acontece exatamente na pessoa de Maria. Por isso, ela
mesma proclama, em louvação, as maravilhas realizadas por Deus ao longo da
história, desde as promessas a Abraão até a realização em seu ventre. É uma
história longa, cujo fio condutor é a fidelidade de Deus às suas promessas e
sua clara opção pelos pobres, pequenos e desvalidos. Concentraremos a nossa
reflexão somente no texto evangélico proposto, sem colocar em discussão as
outras leituras propostas pela liturgia, nem as afirmações do dogma da
Assunção, proclamado em 1950 pelo papa Pio XII.
Este é um dos trechos mais apreciados do Evangelho segundo Lucas,
sobretudo, nas tradições católicas, devido a relevância dada à figura de Maria.
É uma das raras cenas do Novo Testamento que tem somente mulheres como
protagonistas, o que indica sua importância e peculiaridade. Com isso, o
evangelista preconiza o início de uma nova história para a humanidade, com
novas perspectivas e esperanças; trata-se de uma história construída e escrita
a partir dos pobres, desprezados e marginalizados da sociedade, como eram as
mulheres na época em que Evangelho foi escrito. O que Deus sempre propôs à
humanidade, começa a cumprir-se e realizar-se definitivamente a partir do sim
de Maria. Como pessoas simples e humildes, Maria e Isabel, protagonistas do
episódio, são uma prova de que o Deus de Israel tem um lado na história: o lado
dos pobres, humildes e marginalizados, a quem ele dirige o seu olhar
misericordioso (v. 48).
Localizado no chamado “Evangelho da Infância” de Lucas (Lc 1–2), o
próprio texto de hoje, no primeiro versículo, fornece o seu contexto, através
da expressão temporal “naqueles dias”. Essa expressão faz referência aos
eventos anteriormente narrados: a dupla anunciação: do nascimento de João a
Zacarias, esposo de Isabel (Lc 1,5-25), e do nascimento de Jesus a Maria (Lc
1,26-38), ambos feitos pelo mesmo anjo do Senhor, Gabriel. Ambos os anúncios
mexeram com seus destinatários, deixando-os perplexos, inicialmente. Maria, ao
contrário de Zacarias, mesmo tendo questionado o anjo, respondeu convictamente
com um sim (Lc 1,38), o que não significa que não lhe tenham ficado dúvidas e
até medo.
Certamente admirada com tudo o que estava acontecendo consigo e com
Isabel, pois o anjo lhe informara (Lc 1,36), Maria tomou a firme decisão de ir
visitar sua parenta: “Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa,
dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia” (v. 39). Embora a
maioria das interpretações apontem o desejo de servir a Isabel como o motivo da
partida apressada de Maria, o texto não fornece nenhum indício. Sem dúvidas, o
serviço ao próximo sempre fez parte do estilo de vida de Maria, sobretudo após
o seu sim a Deus. Mas aqui podemos ver algo além disso. Ora, quando Maria
questionou o anjo no momento do anúncio, sobre como poderia engravidar se não
tinha relação homem algum (Lc 1,34), o anjo disse que tudo seria obra do
Espírito Santo, e ainda deu um exemplo concreto e próximo de que nada é
impossível para Deus: Isabel, uma anciã estéril estava grávida (Lc 1,36). A
gravidez de uma anciã estéril seria tão surpreendente quanto a de uma jovem
virgem. É normal e compreensível que Maria tenha procurado Isabel para
confirmar se o que anjo lhe dissera era verdade. Também é normal que tenha
procurado sua parenta para partilhar a alegria do que estava acontecendo com
ambas, como sinal da fidelidade de Deus ao seu povo, Israel, de quem as duas
são imagens.
Ao
conceder tanto espaço a Maria no início do seu Evangelho, Lucas está criando o
modelo de discípulo/discípula ideal para Jesus. Por isso, é importante
apresentá-la em movimento, disposta a proclamar, até nos lugares mais
distantes, as maravilhas de Deus e a certeza de que ele está construindo uma
nova história. A partida de uma jovem grávida de Nazaré, na Galileia, para a
Judeia antecipa os desafios e a necessidade dos discípulos de todos os tempos
estarem sempre em estado de saída. Mesmo que a distância não fosse tão grande,
as circunstâncias eram muito adversas para uma mulher jovem e grávida. É típico
da obra lucana o movimento, o sair de si. Essa partida imediata de Maria faz
dela um modelo de discípula e, ao mesmo tempo, inaugura o primeiro movimento de
Jesus: ainda no ventre, Ele já estava inquieto e pronto a romper qualquer
situação de estabilidade e tranquilidade, mesmo enfrentando adversidades e
perigos, como Maria enfrentou ao partir sozinha para uma região montanhosa e de
difícil acesso.
Ao chegar
ao destino, Maria “Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou
Isabel” (v. 40). Muito mais que cumprimentar, o verbo “saudar” seria mais
apropriado na tradução do texto. A expressão hebraica para a saudação é o
desejo de paz (em hebraico: shalom). Ao enviar os discípulos em missão,
Jesus ordenou que eles desejassem a paz em cada casa que entrassem (Lc 10,5).
Aqui, mais uma vez, Maria antecipa a atitude de cada discípulo e discípula: ser
portador(a) da paz! Como mulher inovadora e corajosa, ela ignora a tradição
patriarcal e saúda a mulher ao invés do homem (v. 40). Assim, ela provoca uma
verdadeira revolução e inversão de valores nas relações sociais, como
aprofundará no seu hino, o Magnificat. Na sociedade do seu tempo, quem
deveria ser saudado era o dono da casa; saudando a mulher, ela afirma que um
tempo novo está surgindo, com novas relações e uma nova ordem.
A
saudação de Maria irradia paz no ambiente, a ponto de fazer até mesmo a
criança, ainda no ventre, agitar-se (v. 41a). Isso porque Isabel
fica “cheia do Espírito Santo” (v. 41b). Trata-se do mesmo Espírito
prometido pelo anjo a Maria no momento do anúncio: “O Espírito Santo
descerá sobre ti” (cf. Lc 1,35a). Como força vital, o Espírito Santo é luz
irradiante e interpelante, que pode ser sentido quando transmitido por pessoas
cheias dele, como Maria. Quem recebe o Espírito Santo, o irradia por onde passa
e onde chega. A atitude de Isabel não poderia ser outra, senão exclamar,
gritando: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu
ventre!” (v. 42). É a palavra profética que nela se atualiza. Sabendo que
Maria carregava dentro de si o Messias, isso fazia dela a mais “bendita” entre
todas as mulheres. Assim, Isabel torna-se a primeira a proclamar as
“bem-aventuranças” no Evangelho segundo Lucas. Ora, gerar filhos na mentalidade
bíblica, era sinal de bem-aventurança e bênção; uma confirmação de que se tinha
Deus a seu favor. Logo, gerar o Messias seria prova de uma dignidade
inigualável.
Tendo
composto seu Evangelho com muita atenção para a Escritura hebraica, o Antigo
Testamento, Lucas procura atualizá-lo no “evento Cristo”. Assim, na continuação
da exclamação de Isabel, o evangelista desenha Maria como a nova “Arca da
Aliança”. Como sabemos, na arca da aliança eram guardadas as tábuas da lei,
sinal máximo da presença de Deus no meio do seu povo. Com a exclamação de
Isabel: “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha
visitar? ” (v. 43), Lucas relembra e atualiza as palavras de Davi
quando estava para receber a Arca em sua casa: “Como virá a Arca de Iahweh
para minha casa?” (2 Sm 6,9). Portanto, Lucas percebe em Maria a arca da
nova da aliança, não mais portadora da Lei, mas portadora do amor e da
misericórdia de Deus. Davi exclamou com medo (cf. 2 Sm 6,10), enquanto Isabel
exclamou de alegria, o que mostra que a Lei escraviza e o amor liberta.
E, mais
uma vez, Maria é reconhecida como bem-aventurada: “Bem-aventurada
aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe
prometeu” (v. 45). Além de exaltar as qualidades de Maria, as palavras de
Isabel são também uma repreensão ao seu esposo Zacarias, o qual, ao contrário
de Maria, não acreditou no anúncio do anjo (Lc 1,20), por isso ficou mudo até
que o menino nascesse. Isabel combate a incredulidade do marido e reforça a sua
fé renovada pela presença de Maria, como ela confessou: “Será cumprido o
que o Senhor lhe prometeu” (v. 45b). Ao repreender a incredulidade do
esposo Zacarias, um sacerdote, Isabel proclama a decadência da antiga religião
oficial do templo, demonstrando que somente os pobres, simples e humildes são
capazes de acolher as intuições do Espírito Santo, como Maria. Assim, a
religião do rigor e da Lei está completamente falida.
Provavelmente
constrangida com tantos elogios da parte da sua parenta, Maria a interrompe e,
exultando de alegria, expressa seu louvor a Deus com o seu cântico, conhecido
como Magnificat (vv. 46-54). Isso reflete também a preocupação do
evangelista com a construção futura da imagem de Maria na Igreja; o centro do
culto e da vida cristã é sempre Deus, pois é ele o autor das maravilhas
operadas e, portanto, é a ele que o reconhecimento e o louvor devem ser
dirigidos. O Magnificat é o primeiro dos cânticos que Lucas apresenta
em seu Evangelho. Trata-se de uma composição que sintetiza todo o Antigo
Testamento. Lucas faz uma construção nova com pedras antigas, pois o texto é um
verdadeiro mosaico de citações do Antigo Testamento. A estrutura geral é tomada
do cântico de Ana (1Sm 2,1-10), o que se explica pela semelhança das duas
situações, uma vez que, assim como Isabel, também Ana era considerada estéril e
concebeu um profeta, Samuel, como Isabel concebeu João Batista. Se Isabel estava
maravilhada por contemplar grandes coisas (vv. 42-45), Maria lhe ajuda a
compreender melhor tal situação, convidando-a a olhar para a história e
perceber que, na verdade, esse Deus de Israel nunca esqueceu o seu povo, sempre
fez grandes coisas em seu favor e, portanto, é a Ele que o louvor deve ser
dirigido. Tudo o que estava acontecendo era dom de Deus.
Maria
personifica todo o Israel e resume os grandes feitos de Deus na história,
destacando, sobretudo, a sua predileção pelos pobres, humildes e humilhados.
Quando reconhece que “o Todo-Poderoso fez e faz grandes coisas” (v.
49), ao mesmo tempo se afirma que não há outros poderosos, exatamente porque
devem ser derrubados de seus falsos tronos (v. 52). É o início do cumprimento
das antigas promessas, agora sob a responsabilidade de Jesus e a comunidade dos
discípulos, da qual Maria é modelo. A versão lucana das bem-aventuranças e
maldições é também aqui antecipada: a expressão “Encheu de bens os
famintos” (v. 53a) antecipa as bem-aventuranças dirigidas aos pobres
(Lc 6,20-21); já a expressão “Despediu os ricos de mãos vazias” (v.
53b) antecipa as repreensões – ai de vós – dirigidas aos ricos (Lc
6,24-25). É, sem dúvidas, a síntese da oração de Israel que deverá ser
continuada pela comunidade dos discípulos, a Igreja cristã.
A
conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como nova arca da nova
aliança: “Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para
casa” (v. 56). Uma expressão muito parecida aparece em 2Sm 6,11: “A Arca de
Iahweh ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e Iahweh abençoou a
Obed-Edom e a toda a sua família”. A presença de Maria na casa de Isabel foi,
com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o
filho esperado, João Batista. Na arca da nova aliança não há tábuas da Lei, não
há norma nem preceito, há apenas Jesus, expressão máxima do amor e da
misericórdia de Deus para com toda a humanidade. O tempo de permanência de quem
irradia o Espírito Santo e a alegria do Evangelho, como fez Maria e assim devem
fazer os discípulos de todas as épocas, é o suficiente para ressignificar a
vida e ler os acontecimentos do presente à luz de tudo o que Deus tem realizado
ao longo da história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário