26 maio - Paraíso! Ah! que essa
palavra nos comunique aquela serenidade de espírito que transparecia no rosto
de São Filipe Néri ao pronunciá-la! (L 52).
São José Marello
EVANGELHO
Naquele tempo, os onze discípulos partiram para a Galileia, em direção ao monte que Jesus lhes indicara.
Quando O viram, adoraram-no;
mas alguns ainda duvidaram.
Jesus aproximou-Se e disse-lhes:
«Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra. Ide e fazei discípulos de todas as nações,
batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei.
Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».
Mesmo
curto, o texto é complexo; por isso, para compreendê-lo bem é necessária uma
certa familiaridade do leitor com todo o Evangelho segundo Mateus. Na
impossibilidade de recordarmos aqui todo o conteúdo do Evangelho, recordamos,
como introdução e contextualização, o relato do túmulo vazio e ressurreição
(cf. Mt 28,1-10), com as respectivas manifestações de um anjo do Senhor (cf.
28,2) e do próprio Jesus Ressuscitado (cf. 28,9) às mulheres que foram ao
túmulo naquele primeiro dia da semana (cf. 28,1). O anjo e Jesus Ressuscitado
confiaram às mulheres a missão de convencer os discípulos a retornarem à
Galileia para, ali, fazerem também eles a experiência de encontro com o
Ressuscitado.
Diferentemente
de Lucas, por exemplo, para Mateus Jerusalém só oferece hostilidade ao
discipulado e à mensagem de Jesus; permanecendo lá, os discípulos não conseguem
encontrar-se com o Ressuscitado. Na verdade, essa ideia já vinha sendo
preparada desde o início do Evangelho com o episódio da visita dos magos: eles
procuraram “o rei dos judeus” em Jerusalém, em vão; guiados pela estrela,
perceberam que ele só podia ser contemplado na periferia, em Belém (cf. Mt
2,1-12). Como centro do poder religioso e político, a capital representava o
“contra reino”, ou seja, a negação completa do projeto de Jesus.
Podemos,
assim, compreender porque “os onze discípulos foram para a Galileia, ao
monte que Jesus lhes tinha indicado” (v. 16). A referência aos onze,
além de recordar que Judas Iscariotes já não fazia mais parte do grupo, tem um
significado muito importante para a comunidade de Mateus: representa a
superação de uma mentalidade nacionalista e triunfalista. Ora, o número doze
fazia alusão ao antigo Israel, e alimentava a ideologia davídica. Esse projeto
faliu, Israel rejeitou o seu verdadeiro messias, causando sua morte na cruz.
Fazendo uma releitura dos últimos acontecimentos à luz da ressurreição, a
comunidade de Mateus concluiu que, para a missão universal lograr êxito, é
necessário distanciar-se dos antigos esquemas e tradições de Israel. Por isso,
mais que incompletude, o número onze é sinal de nova mentalidade e perspectiva.
Não podemos esquecer que a eleição de Matias para recompor o número doze é um
elemento exclusivo da teologia de Lucas (cf. At 1,15-26). Na perspectiva de
Mateus, para a comunidade do Ressuscitado sobreviver e crescer, é necessário
abandonar os esquemas do judaísmo.
O
retorno à Galileia é muito significativo. Em Jerusalém a experiência fora
completamente negativa; além de ter sido o cenário da paixão e morte de Jesus,
a capital não oferecia nenhuma perspectiva para a comunidade do Ressuscitado lá
florescer. Recordemos o conluio dos poderes religioso, militar e político para
desacreditar a ressurreição (cf. 28,11-15), com a mentira do roubo do corpo de
Jesus pelos discípulos (cf. Mt 28,11-15). Portanto, o retorno à Galileia era
necessário para a sobrevivência da comunidade e, ao mesmo tempo, para o
reencontro dos discípulos com as motivações originárias do seguimento. Além das
incompreensões ao longo da caminhada, inclusive disputa por poder (cf. 20,20),
os acontecimentos envolvendo a paixão e a morte de Jesus deixaram a comunidade
profundamente abalada. Daí a necessidade do retorno ao ideal primeiro, ou seja,
retornar à Galileia, onde tudo começou, para fazer a experiência do monte.
Ao
longo de todo o Evangelho, há muitas referências ao monte, desde o monte das
bem-aventuranças (cf. 5 – 7) até o monte das oliveiras (cf. 24 – 25). O monte é
o lugar de encontro com Deus e com a sua palavra. Foi no monte que Jesus lançou
o seu programa de vida, as bem-aventuranças (5,1-12), e esse convite para os discípulos
retornarem à Galileia, para o monte, é exatamente para voltarem à essência do
seu projeto de vida. É também um modo de indicar a continuidade entre a
mensagem de Jesus de Nazaré e o Ressuscitado. A Galileia como região desprezada
entre os judeus é um alerta aos discípulos quanto aos destinatários primeiros
do anúncio: os pobres e marginalizados.
Na
sequência, o texto descreve a reação dos discípulos: “Quando viram Jesus,
prostraram-se diante dele. Ainda assim, alguns duvidaram” (v. 17). A
princípio, parecem duas posturas opostas diante da ressurreição, mas o
evangelista as vê como complementares. Prostrar-se é sinal de adoração e de
convicção na ressurreição e na divindade de Jesus. Aqui, o evangelista emprega
o mesmo verbo que tinha usado para indicar a atitude dos magos quando visitaram
Jesus recém-nascido em Belém (cf. 2,2): prostrar-se em adoração (em grego:
proskinêo). Esse verbo tanto indica adoração quanto sujeição a alguém, como
deve ser a postura da comunidade: adorar somente a Jesus e sujeitar-se somente
ao que ele ensinou, assumindo completa autonomia e emancipação em relação aos
preceitos da lei. Com esse gesto, o evangelista diz que os discípulos aceitam
os valores do reino como universais e, por isso, lutarão para que cheguem a
todos lugares da terra.
A
dúvida não faz mal à comunidade, pelo contrário; nem mesmo Jesus vê problemas
no duvidar, tanto que não repreendeu os discípulos por isso. Como o evangelista
não diz o motivo da dúvida, nem mostra Jesus repreendendo-os, podemos dizer que
ele está apresentando uma característica necessária para a comunidade do
Ressuscitado. Para a solidez da fé, a dúvida se faz necessária, pois o seu
antídoto não é a certeza, mas o amor. Portanto, quanto mais se dúvida, mais
necessidade se tem de amar, e amar sem limites. Podemos dizer que a dúvida e a
fé são companheiras inseparáveis na vida da comunidade.
Diante
da reação dos discípulos, Jesus toma a palavra e profere seu breve discurso de
envio (vv. 18-20). É importante perceber que não são palavras de despedida, até
porque ele não vai embora da comunidade; são palavras de envio e
comissionamento. Ao dizer “Toda autoridade me foi dada no céu e sobre a
terra” (v. 18), Jesus está decretando a falência dos poderes sediados
em Jerusalém (religioso, militar e político), e estabelecendo uma nova ordem. A
verdadeira autoridade, exercida pelo amor, parte da periferia, enquanto em
Jerusalém tem apenas força de morte, uma vez que lá a autoridade é exercida com
base na mentira, no medo, no suborno e na violência.
Após
uma pequena introdução (v. 18), segue-se o envio universalista e
inclusivo: “Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em
nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo” (v. 19). Aqui, Ele está,
de fato, fazendo uso da sua autoridade e, mais uma vez, mostrando a diferença
da sua para outras formas de exercício de autoridade. Ele não envia seus
discípulos para impor nem dominar, mas para fazer novos discípulos. Essa é, sem
dúvidas, uma das maiores novidades de seu projeto de vida e de sociedade. Não
envia os discípulos para doutrinarem ninguém, mas para apresentarem uma
proposta de vida. Aqui, registramos a força do verbo empregado pelo evangelista
para “fazer discípulos”: no grego, idioma original do evangelho, há o verbo
“discipular” (em grego: matheteúô); com ele, o evangelista consegue distinguir
o discipulado de uma simples tarefa, o que não distinguimos com facilidade em
nossa língua, com as traduções que temos. O novo e universal discipulado deve
nascer do testemunho, ou seja, da maneira de viver dos discípulos, os quais não
são operadores de tarefas, mas seguidores e testemunhas de Jesus de Nazaré, o
Ressuscitado.
À
missão de “discipular” é intrínseca a função de batizar, como sinal de pertença
à comunidade dos discípulos. Mateus pensa na sua comunidade marcada pela tensão
entre os adeptos e os contrários à prática judaica da circuncisão. Dos novos
discípulos, não deve ser exigido nenhum sinal exterior além do batismo. A
fórmula trinitária expressa, mais que uma formulação teológica, a preocupação
do evangelista para que o batismo de ingresso na comunidade cristã não seja
confundido com o rito penitencial do movimento fundado por João Batista. A
expressão “Em nome de/do” indica a força do batismo. Na tradição bíblica, o
nome de uma pessoa é a sua própria essência, expressa a totalidade do ser.
Portanto, ser batizado em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, é ser
impregnado da essência de Deus.
Como
última recomendação do mandato, Jesus apresenta uma advertência, mais que uma
ordem: “ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!” (v
20a). Tudo o que Ele ordenou ou ensinou não foi muita coisa, não foi uma
doutrina, foi apenas um jeito de viver. O pronome indefinido “tudo” (em grego:
panta), expressa a totalidade do que Jesus ensinou e a preocupação para que
nada de secundário seja acrescentado e que possa, inclusive, desviar a
comunidade do que foi ensinado por Ele. E o que, de fato, Ele ensinou, como já
afirmamos, foi um jeito de viver, proposto nas bem-aventuranças e em todo o
discurso da montanha (Mt 5 – 7). O que os discípulos têm a ensinar, para que
todas as nações sejam “discipuladas” é a vivência das bem-aventuranças, e isso
não é doutrina nem código, é vida concreta, é um jeito de ser.
A
última frase de todo o evangelho é, na verdade, a síntese: a certeza da
presença de Jesus na comunidade e na história: “Eu estou convosco todos
os dias, até o fim do mundo” (v. 20b). Embora a tradução do texto
litúrgico apresente o verbo estar no futuro, o evangelista o emprega no
presente (em grego: eimí). O tema da presença é o fio condutor de todo o
Evangelho segundo Mateus: no início, Jesus é apresentado como Emanuel, cujo
significado é “Deus está conosco” (1,23); Ele mesmo garantiu
estar presente quando a comunidade estivesse reunida em seu nome (18,20), e
garante, aqui na conclusão, permanecer para sempre com os discípulos. É essa
presença constante e perene que confere à comunidade a sua razão de existir.
Que
possamos, portanto, viver impregnados da essência de Deus, como discípulos e
discípulas de Jesus de Nazaré que, Ressuscitado, vive e está presente na
história, ajudando-nos a compreender e viver tudo o Ele mesmo ensinou. Quando a
comunidade tem certeza dessa presença, não tem medo de lançar-se à missão para
compartilhar os seus ensinamentos e, ao mesmo tempo, está sempre de portas
abertas para acolher a todos e todas sem distinção.
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