02 junho - É preciso ser fortes e
afáveis, como São Francisco de Sales. (S 174).
São José Marello
X DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B)
Evangelho: Marcos 2,23-3,6 ou 23-28
Proclamação do evangelho de Jesus Cristo segundo Marcos
– [23Jesus estava passando por uns campos de trigo, em dia de sábado. Seus discípulos começaram a arrancar espigas, enquanto caminhavam. 24Então os fariseus disseram a Jesus: “Olha! Por que eles fazem em dia de sábado o que não é permitido?” 25Jesus lhes disse: “Por acaso, nunca lestes o que Davi e seus companheiros fizeram quando passaram necessidade e tiveram fome? 26Como ele entrou na casa de Deus, no tempo em que Abiatar era sumo sacerdote, comeu os pães oferecidos a Deus e os deu também aos seus companheiros? No entanto, só aos sacerdotes é permitido comer esses pães”. 27E acrescentou: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado. 28Portanto, o Filho do homem é senhor também do sábado”.]
3,1Jesus entrou de novo na sinagoga. Havia ali um homem com a mão seca. 2Alguns o observavam para ver se haveria de curar em dia de sábado, para poderem acusá-lo. 3Jesus disse ao homem da mão seca: “Levanta-te e fica aqui no meio!” 4E perguntou-lhes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram. 5Jesus, então, olhou ao seu redor, cheio de ira e tristeza, porque eram duros de coração; e disse ao homem: “Estende a mão”. Ele a estendeu e a mão ficou curada. 6Ao saírem, os fariseus com os partidários de Herodes imediatamente tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-lo.
– Palavra da salvação.
Com
a retomada do tempo comum, também retomamos a leitura contínua do Evangelho
segundo Marcos, como prescreve a liturgia para o ano B. Neste nono domingo, o
texto proposto é Mc 2,23 – 3,6, o qual narra duas situações polêmicas de Jesus
com os seus tradicionais adversários, os fariseus, e certamente com outros
fiéis observantes do judaísmo frequentadores do culto sabático na sinagoga. Se
trata de dois episódios envolvendo a interpretação livre e autônoma de Jesus em
relação ao sábado com as reações contestadoras dos fariseus.
A
observância rigorosa do sábado tinha se tornado o traço mais importante da
religiosidade praticada pelos fariseus. Havia, inclusive, uma grande vigilância
deles em relação a esse preceito, principalmente nas pequenas cidades e
aldeias, distantes de Jerusalém e do templo. A vida rural, totalmente dependente
das atividades manuais, oferecia bem mais possibilidades de “transgressão”,
conforme a mentalidade farisaica. O contexto do texto é o ministério de Jesus
na Galileia, marcado por uma série de polêmicas que lhe renderam diversas
acusações pelos fiéis observantes das tradições religiosas.
Marcos
apresenta uma série de polêmicas envolvendo Jesus nos capítulos 2 e 3 do seu
Evangelho. Ainda no início do seu ministério, Jesus é acusado de: fazer-se
igual a Deus, ao perdoar pecados (cf. Mc 2,1-12); comer com publicanos e
pecadores (cf. Mc 2,15-17); não ensinar seus discípulos a praticarem o jejum
(cf. 2,18-22); transgredir o sábado junto com os discípulos, como relata o
evangelho de hoje: Mc 2,23-28 e 3,1-6. Com duas polêmicas seguidas sobre o
sábado, o evangelista evidencia o zelo que os fariseus tinham por esse
mandamento e a necessidade de Jesus ressignificá-lo, colocando-o a serviço da
vida.
O
texto de hoje se encontra também nos outros sinóticos, com algumas leves
modificações (cf. Mt 12,1-14; Lc 6,1-11). Do primeiro versículo, podemos colher
muitas informações importantes para a interpretação de todo o texto: “Jesus
estava passando por uns campos de trigo, em dia de sábado. Seus discípulos
começaram a arrancar espigas, enquanto caminhavam” (v. 23). Havia um
limite de percurso para se caminhar em dia de sábado, o que não deveria
ultrapassar os 1.200 metros. O texto faz pensar que esse limite estava sendo
desobedecido por Jesus, embora não entre nas acusações posteriores. Enquanto as
versões de Mateus e Lucas dizem que os discípulos arrancaram as espigas para
comer, Marcos diz que arrancaram para abrir caminho, embora a tradução
litúrgica não deixe claro; a tradução mais correta seria: “Seus discípulos
começaram a abrir caminho, arrancando as espigas” (v. 23b). Esse
diferencial de Marcos acentua ainda mais o grau de transgressão; arrancar
espigas para fazer caminho é, literalmente, realizar uma atividade braçal.
A
reação dos fariseus revela a prática de uma religião caduca, vigilante e punitiva: “Então
os fariseus disseram a Jesus: “Olha! Por que eles fazem em dia de sábado o que
não é permitido?” (v. 24). Ao invés de estarem cultuando a Deus ou
fazendo o bem ao próximo, os fariseus estavam vigiando se Jesus e seus
discípulos estavam observando o mandamento. O rigorismo farisaico era tão forte
a ponto de espalharem vigilantes para observar se alguém transgredia a lei. É
esse tipo de religião que Jesus denuncia com sua interpretação livre e prática
libertadora, e o evangelista Marcos faz questão de recordar para sua
comunidade. O Reino a ser construído pelos discípulos e discípulas de Jesus não
pode seguir os parâmetros daquela religião.
Antes,
Jesus já tinha sido questionado pelo comportamento dos seus discípulos em
relação ao jejum (cf. Mc 2,18-22). Naquela ocasião, usou como a argumento a
presença do noivo como sinônimo de alegria, tornando o momento impróprio para o
jejum. Dessa vez, a resposta se fundamenta diretamente na Escritura, mostrando
que também Davi, quando teve necessidade, transgrediu a lei com seus
companheiros, comendo do pão que só era permitido aos sacerdotes (cf. vv.
25-26; 1 Sm 21,2-10). Há um pequeno equívoco do evangelista em relação ao nome
do sacerdote no episódio de Davi: ao invés de Abiatar, era seu pai Aquimelec.
Porém, o importante não são esses detalhes, mas a mensagem em seu complexo: a
obsessão dos fariseus pelo sábado fecha-os completamente, a ponto de não
compreenderem a Escritura.
Jesus resolve a primeira polêmica com uma afirmação de caráter
sapiencial, e exclusiva do Evangelhos de Marcos: “O sábado foi feito
para o homem, e não o homem para o sábado” (v. 27); nessa, ele deixa
claro o sentido do sábado e de toda a lei: o bem do ser humano. Nenhum aspecto
da lei deve ser usado para impedir o bem do ser humano. O sábado e toda a lei
foram feitos para o bem da pessoa humana, para sua plena realização e
libertação. Com essa interpretação, ao invés de transgredir, Jesus recupera o
sentido verdadeiro do sábado como memorial de libertação (cf. Dt 5,12-15), e o
faz com plena convicção de que “o Filho do Homem é Senhor também do
sábado” (v. 28). Com o título de “Filho do Homem”, ele
reivindica sua condição divina e sua missão de reordenar a criação, colocando o
ser humano em seu lugar primordial.
A
segunda parte do texto apresenta a conclusão da série de polêmicas. A cena
acontece ainda no sábado, e dentro da sinagoga: “Jesus entrou de novo
na sinagoga. Havia ali um homem com a mão seca. (3,1). Ao mencionar a
presença de um homem com a mão seca, o evangelista quis enfatizar que se
tratava de uma pessoa impossibilitada de trabalhar para o seu sustento e também
para fazer o bem. Em uma sociedade basicamente agrícola como aquela, as mãos
eram os membros mais valorizados numa pessoa; portanto, aquele homem estava
privado de sua dignidade, do respeito, e da capacidade de colaborar com a
criação e a sociedade. Para quem praticava uma falsa religião, ou seja,
frequentava o culto mas o separava da vida e da prática do bem ao próximo,
aquela situação já não preocupava, era vista como normal. Como para Jesus o
culto agradável a Deus é sempre o bem do ser humano, a situação daquele homem
não poderia lhe passar despercebida.
Como
a fama de Jesus como transgressor da lei e dos bons costumes já tinha se
espalhado, onde ele chegava era bastante observado e vigiado, principalmente
nos ambientes religiosos: “Alguns o observavam para ver se haveria de
curar em dia de sábado, para poderem acusá-lo” (3,2). Os adversários
já estavam prontos para acusá-lo, caso ele intervisse na situação daquele
homem. O evangelista mostra o quanto os praticantes da religião já estavam
perseguindo Jesus: o vigiavam enquanto caminhava e também quando parava e
entrava em algum lugar. Já estava claro que a prática libertadora de Jesus era
uma ameaça e um perigo àquela religião. Onde quer que Jesus se encontrasse,
havia representantes da religião vigiando.
É
claro que Jesus não se intimidava com a perseguição e vigilância. O bem do
próximo, principalmente dos desvalidos e excluídos, era sempre a sua prioridade
maior. Eis, então, a sua atitude: “Jesus disse ao homem da mão seca:
levanta-te e fica aqui no meio!” (3,3). O primeiro que Jesus faz é
restituir a vida; incapacitado para o trabalho, era como se aquele homem não
vivesse. Ao ordenar que se levante, Jesus recupera a vida com o seu sentido de
liberdade; para a ordem de levantar, o evangelista emprega, no imperativo, o
mesmo verbo que usará para expressar a ressurreição de Jesus (o verbo
grego e;geirw –
egheiro); ao ordenar que fique no meio, Jesus o torna protagonista e mostra que
o centro do verdadeiro culto e da religião, deve ser sempre o bem da pessoa
humana. Portanto, Jesus resgatou a vida daquele homem, mandando-o levantar-se,
e deslocou o ser humano para o centro do culto, deixando de lado a
lei com seus preceitos.
Sabendo
que estava sendo observado e até mesmo odiado pelas pessoas devotas presentes
na sinagoga, Jesus faz uma pergunta decisiva para a compreensão da sua
mensagem: “É permitido no sábado fazer o bem ou o mal? Salvar uma vida
ou deixá-la morrer?” (3,4). A resposta foi o silêncio. A pergunta
evidencia a diferença na maneira de compreender o sentido do sábado entre Jesus
e seus adversários. Deixar de fazer o bem já é uma forma de fazer o mal. A
omissão e a indiferença não podem ser aceitas na comunidade cristã, recorda o
evangelista com essa pergunta de Jesus. Não se pode desperdiçar uma única
oportunidade de fazer o bem. O espaço e o momento cultual da cena recordam para
a comunidade qual a natureza do verdadeiro culto agradável a Deus: fazer sempre
o bem ao necessitado.
O
agir de Jesus em favor do bem do ser humano não sensibiliza seus adversários
que preferem permanecer atacados às tradições e prescrições, preferindo uma
religião indiferente à vida: “Jesus, então, olhou ao seu redor, cheio
de ira e tristeza, porque eram duros de coração; e disse ao homem: “Estende a
mão. Ele a estendeu e a mão ficou curada” (3,5). Antes mesmo de narrar
a cura, o evangelista registra a reação de Jesus à dureza de coração dos
adversários: “Jesus encheu-se de ira e tristeza”. Marcos é o único
evangelista que apresenta Jesus com esses sentimentos de indignação; é a reação
de Deus à rejeição do seu amor. A dureza de coração reflete uma religião
petrificada, sem a mínima abertura à novidade do Reino de Deus proposto por
Jesus. Endurecendo o coração ao ver Jesus fazendo o bem, os seus adversários
demonstram a adesão a uma religião excludente, punitiva, legalista e fechada.
Com
a cura, mais que mostrar um ato extraordinário de Jesus, o evangelista alerta a
comunidade a colocar sempre a prática do bem como prioridade. A mão curada
daquele homem significa a restauração da sua vida; com sua saúde restituída,
ele voltou a ser protagonista da própria história, ou seja, voltou a viver.
Certamente, Jesus poderia ter deixado para fazer a cura em um outro momento.
Mas o fez no sábado e na sinagoga para desmascarar aquela religião segregadora
e hipócrita. Fazendo em outro momento, estaria sendo conivente com aquele culto
ultrapassado indiferente à vida das pessoas com seus problemas. Fazendo em um
contexto cultual, ele deixou explícita a sua denúncia e a sua indignação com
uma religião fechada ao amor que é a essência mesma de Deus.
A
postura libertadora de Jesus incomoda aos duros de coração; e isso os leva a
procurarem uma maneira de eliminá-lo, afinal, Jesus estava sendo um perigo para
aquele modelo de sociedade e de religião. Por isso, “Ao saírem, os
fariseus com os partidários de Herodes, imediatamente tramaram contra Jesus, a
maneira como haveriam de mata-lo” (3,6). A colisão dos fariseus com os
partidários de Herodes mostra o quanto a mensagem de Jesus era inquietante,
tornando-se uma ameaça para o sistema, e denuncia o máximo de hipocrisia: é o
conluio dos covardes, dos opressores, de quem percebe que seus sistemas
falharam e, por isso, apelam para a violência. Eram grupos adversários que
tinham escolhido Jesus como inimigo comum. Os herodianos constituíam o grupo de apoio público
à dominação romana, e reconheciam a divindade do imperador. Já os fariseus,
como o mais devoto dos grupos religiosos judaicos, viam a dominação romana como
um abomínio, por isso esperavam constantemente pelo envio de um Messias
glorioso e guerreiro que ressuscitasse o reino davídico-salomônico. Nesse plano
de fariseus e herodianos, está uma antecipação do plano futuro que levará Jesus
à morte: a religião e o império romano unidos para pôr fim a um personagem incômodo
e indesejado: Jesus de Nazaré.
Mesmo
não sendo observantes do sábado, as comunidades de hoje devem ser questionadas
pelo Evangelho de hoje. São convidadas a refletir sobre quais são suas
prioridades cultuais, sobre suas opções preferenciais e, principalmente, sobre
a presença de Jesus em seu meio. A presença do Ressuscitado numa comunidade
provoca mudanças, abala estruturas, desconstrói paradigmas e concepções. Ao
ressignificar o sábado, Jesus mexeu com aquilo que o seu povo considerava mais
sagrado. Precisamos aprender com ele a discernir entre o essencial e o
periférico, sabendo de antemão que o essencial é sempre a promoção do bem e a
libertação do ser humano.