05 novembro - É preciso ver todas as coisas à luz da fé, fazer com que a razão prevaleça sempre sobre o coração e a vontade de Deus sobre a razão: aceitar tudo das mãos do Senhor, tanto as coisas que nos agradam como as que nos desagradam, respondendo sempre e a tudo: “Deo gratias!” Obrigado Senhor! (S 237). São Jose Marello
Mateus 5, 1-12a
A Palavra de Deus
Naquele tempo, ao ver a multidão,
Jesus subiu ao monte. Sentou-se e os seus discípulos foram para junto dele.
Jesus começou então a ensiná-los desta maneira: "Felizes os que têm
coração de pobres, porque é deles o Reino dos céus! Felizes os que choram,
porque Deus os consolará! Felizes os humildes, porque terão como herança a
terra prometida! Felizes os que têm ânsia de cumprir a vontade de Deus, porque
Deus lhes satisfará os anseios! Felizes os que tratam os outros com
misericórdia, porque Deus os tratará com misericórdia também! Felizes os
sinceros de coração, porque hão-de ver a Deus! Felizes os que procuram a paz
entre os homens, porque Deus lhes chamará seus filhos! Felizes os que são
perseguidos por cumprirem a vontade de Deus, porque é deles o Reino dos céus!
Considerem-se felizes quando vos insultarem e perseguirem e vos caluniarem, por
serem meus discípulos! Alegrem-se e encham-se de satisfação, porque é grande a
recompensa que vos espera no céu.
As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e,
consequentemente, dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. É um
texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de
modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos
e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por
isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o
Evangelho apresenta.
O discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e,
portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na
mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera
apologia ao devocionismo fundamentalista que tanto tem se difundido nos últimos
anos. Por isso, é preciso ter clareza do programa de vida de Jesus com seu
projeto de sociedade e, consequentemente, das suas exigências.
De todas as palavras atribuídas a Jesus que encontramos ao longo dos
evangelhos, as bem-aventuranças são as mais interpelantes e revolucionárias,
embora sejam as mais fáceis de serem deturpadas, passando de uma mensagem de
transformação a uma de resignação. Infelizmente, isso tem acontecido com muita
frequência. Por isso, é necessário compreendê-las bem, para que sua mensagem
seja sempre de encorajamento e transformação. Na versão mateana, encontramos
oito bem-aventuranças, embora alguns comentadores considerem nove, devido à
ocorrência do termo grego makárioi (μακάριοι) por nove vezes. Não consideramos
a nona ocorrência do termo (v. 11) como uma nova bem-aventurança, mas como uma
recapitulação e síntese das oito para os discípulos, reforçando a exigência
para que eles de fato vivessem intensamente todas elas.
Para compreendermos as bem-aventuranças em seu sentido original, é necessário
fazer mais uma consideração semântica. Como já afirmamos anteriormente, o termo
grego empregado no Evangelho é makárioi (μακάριοι), o qual pode ser traduzido
por benditos, felizes ou bem-aventurados; é uma fórmula que introduz uma
mensagem de felicitação. É importante recordar que, embora escritos em grego,
os evangelhos foram construídos segundo uma mentalidade semítica, sobretudo o
de Mateus. Por isso, é importante recordar o sentido da palavra na língua
original de Jesus, o hebraico. Ora, o termo correspondente ao grego μακαριοι –
makárioi, em hebraico é (אשרי) ashrei, o qual significa uma felicitação, mas é,
ao mesmo tempo, uma forma imperativa do verbo caminhar, seguir em frente,
avançar ou pôr-se em marcha. Acreditamos que o evangelista pensou nos dois
sentidos ao formular o seu texto. Sem esse segundo sentido, as bem-aventuranças
não passariam de conformismo ou resignação; com ele, passam a ser uma mensagem
de transformação.
Olhemos, pois, para cada uma das situações contempladas por Jesus como
necessitadas de transformação. Eis a primeira bem-aventurança: “Bem-aventurados
os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 3). De todas, tem
sido essa a bem-aventurança que tem recebido as interpretações mais equivocadas
ao longo da história, infelizmente. Longe de ser um convite ao conformismo, é
um impulso à transformação. Na língua grega a palavra pobre (πτωχός – ptokós)
deriva do verbo acocorar-se de medo, dobrar-se, abaixar-se, encurvar-se;
designa, portanto, uma condição de humilhação extrema.
O convite de Jesus é para que não desanimem, mas sigam em frente, não desistam,
coloquem-se em marcha para alcançarem o Reino que foi criado para eles, o Reino
dos Céus, mas não no céu, aqui mesmo na terra, como sinônimo de vida digna e
plena. Aqui o termo espírito (em grego: πνεύμα – pneuma) é empregado como
sinônimo de consciência da situação em que se encontram os pobres, encurvados
de medo pela opressão do império romano e pela religião oficial da época. A
esses, Jesus convida a perder o medo e, conscientemente, seguir em frente
lutando pelo Reino. O pobre que se encontra encurvado pelo sistema, deve tomar
consciência da sua situação insuportável e lutar, seguindo em busca de seus
direitos de herdeiro do Reino.
A segunda bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os aflitos, porque serão
consolados” (v. 4). Ora, jamais será consolado o aflito que se fecha em suas
aflições, mas sim aquele que consegue mover-se, apesar do sofrimento. Ser
consolado na mentalidade bíblica é ter o sofrimento eliminado por completo. A
implantação do Reino dos Céus em um mundo tão hostil traz muitas aflições para
os discípulos de Jesus. Mesmo assim, eles devem avançar, jamais recuar, para
encontrar a consolação.
Na terceira bem-aventurança, Jesus diz: “Bem-aventurados os mansos, porque
possuirão a terra” (v. 5). O termo manso equivale a humilde, e significa a
pessoa que reivindica alguma coisa sem violência. Nesse caso particular,
equivale às pessoas que lutam pela terra sem fazer uso da violência. A luta sem
violência se torna mais lenta e, aparentemente, mais difícil de conseguir o
objetivo. Por isso, Jesus encoraja, pede paciência, determinação e ação; em
outras palavras, é como se ele dissesse: “não parem, continuem caminhando e
lutando”. Era muito comum os pequenos camponeses perderem suas terras por
dívidas, com possibilidade de resgate. À medida que o tempo passava, as
esperanças de resgate diminuíam e muitos desanimavam. Por isso, Jesus os
consola e os encoraja.
Como não poderia deixar de ser, Jesus coloca para os discípulos, conforme ele
mesmo o fizera, a justiça como uma busca incessante. Por isso, a quarta
bem-aventurança é tão forte: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de
justiça, porque serão saciados” (v. 6). A fome e a sede são as necessidades que
mais incomodam o ser humano. Assim como o alimento e a bebida são essenciais
para a vida, também deve ser a luta por Jesus entre seus discípulos. A
comunidade cristã não tem vida quando não se alimenta cotidianamente de
justiça. Onde não há justiça, não há dignidade, não há paz. É preciso seguir em
frente na luta por justiça.
Na quinta bem-aventurança, temos: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque
encontrarão misericórdia” (v. 7). É importante recordar que misericórdia, na
Bíblia, não é um sentimento, mas uma ação em favor dos necessitados. Com isso,
Jesus pede que seus discípulos prossigam sempre no caminho do bem. A
misericórdia é uma das principais características do Deus de Jesus, por isso,
deve ser também para os seus seguidores. Seguir fazendo o bem ao próximo, sem
distinção, é uma das principais exigências do discipulado.
Com a sexta bem-aventurança, Jesus se contrapõe claramente aos ritos de
purificação da religião judaica: “Bem-aventurados os puros de coração, porque
verão a Deus” (v. 8). Os antigos ritos de purificação do judaísmo tinham
escondido o rosto verdadeiro de Deus. Jesus proclama a nulidade daqueles ritos
e pede para seus discípulos caminharem em outra direção, avançarem por outro
caminho que não seja o da religião que divide, exclui e até mata. Só há um tipo
de pureza: aquela interior, e essa não é proporcionada por nenhum rito, mas
somente pela disposição do ser humano em seguir os propósitos de Deus. Vê a
Deus quem olha para o próximo com os olhos de Deus. É nessa direção que o
discípulo de Jesus deve marchar, avançar.
A sétima bem-aventurança diz: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque
serão chamados filhos de Deus” (v. 9). Na marcha da comunidade formada por
discípulos e discípulas de Jesus, a promoção da paz é requisito básico e
essencial. Não se trata de uma falsa paz como aquela imposta por Roma,
intitulada “pax romana”. A paz que Jesus propõe não é uma mera ausência de
conflitos, mas um retorno ao ideal hebraico expresso pela palavra (שלום)
shalom: paz como bem-estar total do ser humano, harmonia com Deus, com o
próximo e consigo mesmo. É por essa paz que a comunidade de discípulos e
discípulas deve lutar enquanto caminha, fazendo dessa paz o rumo da caminhada.
Não há prêmio para quem caminha promovendo a paz, mas há consequências: ser
chamados filhos de Deus. Na tradição bíblica, ser filho é ser parecido com o pai.
Quando alguém caminha promovendo a paz, se torna parecido com Deus, por isso,
será chamado seu filho.
A oitava bem-aventurança funciona como uma espécie de credencial para o
reconhecimento do discípulo e sua pertença ao Reino: “Bem-aventurados os que são
perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” (v. 10). A
justiça, por excelência, é a prática das bem-aventuranças anteriores. A quem
adere plenamente à lógica do Reino, não há outra consequência a não ser a
perseguição. Mas, mesmo diante da perseguição, a palavra de Jesus continua
sendo de ânimo e encorajamento: continuai caminhando, avançando, marchando em
busca do Reino que é vosso!
Viver as bem-aventuranças é, portanto, abraçar um projeto de sociedade
alternativa que, inevitavelmente, entra em conflito com os sistemas dominantes
baseados na exploração, no lucro, na sobreposição de uns sobre os demais e pela
violência. Mas é diante de tudo isso, ou seja, no conflito, que a comunidade
cristã deve avançar, seguir em frente sem jamais desanimar. Por isso, Jesus
reforçou todo o ensinamento anterior, direcionando diretamente para os
discípulos a conclusão com as consequências do abraçar o seu projeto:
“Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo,
disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai,
porque será grande a vossa recompensa nos céus” (vv. 11-12a). Alguns estudiosos
vêem essa afirmação como uma nova bem-aventurança, enquanto outros, a maioria,
a vêem como um reforço e síntese conclusiva das oito anteriormente
apresentadas. Aquelas oito são inseparáveis. Jesus não as apresenta como
sugestões para os discípulos escolherem uma ou outra. É preciso viver todas
elas para ser discípulo e discípula de Jesus, pois nelas ele traça o seu
próprio retrato, diz como ele mesmo viveu, caminhou ou avançou; e o discípulo
deve, inevitavelmente, viver como ele.
Assim, recordando que Paulo e os demais cristãos de suas comunidades
chamavam-se mutuamente de santos, e eram cristãos porque levavam a sério as
bem-aventuranças, podemos compreender que celebrar todos os santos é recordar
todos os que não aceitam as coisas como são impostas, mas sabem mover-se,
avançar e seguir um outro caminho, não para fugir da realidade, mas para
transformá-la à maneira de Jesus.
Para seguir Jesus é preciso estar em estado permanente de marcha, caminhando
contra tudo o que impede a realização do Reino já aqui na terra. A comunidade
cristã não pode mais aceitar que uma mensagem tão encorajante e transformadora
se transforme em sinal de resignação e aceitação passiva diante de tudo o que
impede o advento do Reino. A mensagem das bem-aventuranças é libertadora porque
convida o discípulo e a discípula a sair de si, colocar-se em movimento rumo a
um mundo melhor, mais justo e mais fraterno.