A Mala Nossa De Cada Dia
Vamos supor que a gente quando nasce recebe uma
mala de presente. Uma mala elástica que começa pequena e vai crescendo com o
tempo. Mas nada impede que ela encolha também.
Nessa mala a gente vai acumulando coisas, lembranças, hábitos, relações e
carregando conosco pra todo canto. Tem certos dias em que a gente se sente tão
cansado... Mas nem se dá conta do peso de nossa mala. E continuamos pesados,
enrijecidos, cansados, carregando a bendita mala pra onde quer que a gente vá.
Há lembranças que nos são muito caras, há outras que nos fazem bem, umas que a
gente nem sabe bem que estão ali porque já caíram no esquecimento, outras nos
incomodam e assim todos vão dando forma e consistência à mala.
Alguns podem estar se perguntando agora: mas que mala é essa? Eu não costumo
carregar nem sacola de supermercado, quanto mais mala! E é notório salientar e
informar que carregamos sim. Carregamos sempre, onde quer que a gente vá.
A mala é como uma representação de nós mesmos, da nossa história. Na verdade
muito pouco do que contém foi colocado por nós, ao contrário, são as outras
pessoas, as nossas relações que se encarregaram de fornecer seu conteúdo.
Por exemplo, quando queremos aprender a ser mãe ou pai, onde vamos buscar conhecimento?
Na filha ou filho que fomos um dia. Naquela relação muitas vezes esquecida
formatou-se em na gente a mãe ou o pai que conseguimos ser. Muitos exemplos são
os que desejamos seguir, mas quantas vezes nos surpreendemos repetindo
exatamente os comportamentos que mais abominávamos... E nem sempre percebendo
esta repetição a gente segue repetindo, e repetindo, e repetindo...
E exemplos, existiram aos montes ao longo da vida: familiares, de amigos,
desafetos, livros, notícias do jornal, professores, estranhos, enfim bebemos de
tantas fontes que não nos é possível enumerar. Isso nos permite uma riqueza de
experiências tão grande, abre tantas possibilidades... Então qual é o problema?
Não sabemos exatamente se é um problema ou apenas uma questão, mas importa
saber como estamos lidando com o peso da mala, como estamos repetindo os
registros acumulados. Na verdade seguindo o princípio lógico da mala, devemos
entender que funciona assim: quanto mais difícil carregar a pesada mala,
quanto mais repetimos os mesmos repertórios, maior talvez seja o peso inútil
que ela contém.
O ideal seria que de tempos em tempos fizéssemos uma
faxina na mala. Devemos abrir a dita cuja mala com cautela (deve-se lembrar que
muitos de nossos maiores tesouros estão lá dentro e não podemos colocá-los em
risco) e olhássemos seu conteúdo de uma forma crítica, analisando, questionando
e por fim decidindo em mantê-lo ali ou dar-lhe outro destino.
Talvez valha a pena perguntar: será que o comportamento de se chatear e se
fechar no quarto, adquirido em muitos casos quando estávamos na tenra idade da
infância, e minha/nossas mães vinham nos adular, nos pôr no colo, ainda serve
para as contrariedades da fase adulta? Haveria uma forma melhor de lidar com
isso? Afinal hoje não tem mais ninguém disposto a nos dar colo nessa situação!
Quando nossos pais nos ensinaram que nós tínhamos que comer até o último grão
de comida do prato que eles serviam, pensando na fome da África, onde à época
pesávamos em torno de 25 kg. Será aceitável hoje, aonde em alguns casos chega a
120 kg ou mais, ainda temos que seguir a mesma regra ou será melhor aprender a
respeitarmos o limite do nosso estômago?
Nossos pais eram nossos ídolos maiores e devemos seguir seus exemplos, mas será
que todas as suas características nos interessam? E quando eles gritavam tanto
que a vizinhança inteira escutavam nos deixando envergonhados? E quando eles
bebiam além da conta falando pelos cotovelos? Quando deixavam nossas mães e os
irmãos preocupados por ficarem fora de casa tanto tempo sem dar notícias?
Gostamos muito de seu bom humor, admiramos sua honestidade, seu carinho pela
família, mas não somos obrigados a ficar com o pacote inteiro. Os gritos,
porres e ausências não devemos exatamente repetir. Devemos jogar pra fora da
nossa mala sem que isso represente um desrespeito a nossos pais. Representa na
verdade o respeito a nós mesmo.
E neste ponto devemos nos perguntar: será que ao longo da vida a gente se
questiona quanto a nossas características? Será que costumamos refletir sobre nossos
atos ou vamos no “piloto automático”, atuando sem pensar, repetindo coisas de
que nem gostamos?
A faxina na mala não é uma tarefa fácil, não é nem rápida ou previsível, no
meio do caminho podemos nos deparar com guardados tão arraigados que não saem
de lá nas primeiras tentativas de expulsão, haja questionamentos, reforma
íntima, força de vontade! Neste percurso é sempre bom contar com alguma
ajuda, seja de uma pessoa querida, um mentor espiritual ou mesmo um terapeuta
profissional. Isso ajuda a evitar armadilhas, como nos depararmos com
conteúdos que estão na mala “porque sempre estiveram e tem que ser assim”,
mascarando toda a dor que podemos sentir ao remexer neles e impedindo que sejam
digeridos da melhor forma.
Sem falar no medo do desconhecido. Alguns casos, como de uma pessoa que diz
preferir um problema conhecido a se aventurar a ser feliz sem ter certeza. Aí
cabe uma pergunta: e que certeza nós temos nessa vida? Tudo é sempre tão
provisório, tão efêmero, que qualquer segurança, garantia, são
enganosas. Neste sentido, feliz de quem está “desenganado”, ou seja, já
não tem a ilusão da imortalidade e pode simplesmente viver cada momento como
deseja, já que não haverá tantos momentos disponíveis assim.
Alguns podem estar pensando: muito bom, parece ótimo,
mas e se eu começar a jogar tudo o que tenho na minha mala fora, eu fico com o
que? E segundo a lógica da mala é impossível jogar todo o conteúdo da mala
fora, porque tem muita coisa importante dentro dela e ela nos constitui
enquanto pessoas. Não dá pra tirar algo sem ter outra coisa a nos constituir, a
diferença é que o que tiramos nos foi dado por outrem e o que colocamos tem
mais a “nossa cara”, “nosso jeito”, portanto nos habilita um pouco mais a ser
felizes, a ousar, a explorar possibilidades.
E o que os outros vão pensar? É óbvio que os outros
pensam de qualquer jeito, quer mantenhamos a mala intacta, quer façamos
mudanças, sempre haverá quem admire e quem recrimine. Valerá a pena pautar as
nossas vidas sempre pelo que os outros pensam? Será que nossos próprios
julgamentos não são suficientes para decidir entre o que é aceitável,
desejável, bem vindo ou não?
Durante a infância muitas vezes os adultos tentaram nos controlar com esta
entidade “os outros”, no sentido de demonstrar que ainda somos muito
incompetentes para tomar decisões sobre nossas vidas, mesmo que a decisão seja
usar uma camiseta de malha com gravata, bermuda com cinto, meião de jogador de
futebol e botas. O que os outros vão pensar? Há quem ache feio, há quem ache
ridículo, há quem se pergunte se essa criatura não tem mãe e também quem se
pergunte por que nunca tentou um visual tão inusitado e "fashion"!
Qual o problema? Sempre vão pensar alguma coisa, mas devemos ousar em afirmar
que “os outros” prestam muito menos atenção em nós do que nosso narcisismo
imagina e também que não somos tão incompetentes assim para decidir, mesmo
quando ainda tenhamos pouca idade. Talvez seja mais cômodo para os adultos
manobrar com nossa vontade usando esta estratégia quando somos crianças, o que
não significa em absoluto que ela seja aceitável ainda hoje, quando somos nós
os adultos.
Na vida costuma ser mais bem sucedido, mais feliz, quem
é mais capaz de flexibilidade, quem melhor se adapta às situações. A sugestão
é: se nossas malas nos deixam “engessados”, tolhendo nossos movimentos,
dificultando ou impedindo que a gente se mexa, que façamos diferente,
experimentemos fazer a faxina! Talvez vá ficando mais fácil carregá-la, talvez
a gente se enamore da idéia de fazer faxina e adotemos a limpeza esporádica,
talvez a gente goste tanto da nova mala que desenvolva até uma coreografia
mostrando formas alternativas de se carregar uma mala, mas não deixemos de
experimentar possibilidades. Elas são tantas...
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