29 setembro - Quanto mais alguém trabalha sem pendor natural e guiado tão somente pela fé tanto melhor consegue enganar o demônio. (L 87). São Jose Marello
Leitura do santo Evangelho segundo São Marcos 9,38-43.45.47-48
"João disse:
- Mestre, vimos um homem que expulsa demônios pelo poder do nome do senhor, mas
nós o proibimos de fazer isso porque ele não é do nosso grupo.
Jesus respondeu:
- Não o proíbam, pois não há ninguém que faça milagres pelo poder do meu nome e
logo depois seja capaz de falar mal de mim. Porque quem não é contra nós é por
nós. Eu afirmo a vocês que isto é verdade: quem der um copo de água a vocês,
porque vocês são de Cristo, com toda a certeza receberá a sua recompensa.
Jesus continuou:
- Quanto a estes pequeninos que crêem em mim, se alguém for culpado de um deles
me abandonar, seria melhor para essa pessoa que ela fosse jogada no mar, com
uma pedra grande amarrada no pescoço. Se uma das suas mãos faz com que você
peque, corte-a fora! Pois é melhor você entrar na vida eterna com uma só mão do
que ter as duas e ir para o inferno, onde o fogo nunca se apaga. Se um dos seus
pés faz com que você peque, corte-o fora! Pois é melhor você entrar na vida
eterna aleijado do que ter os dois pés e ser jogado no inferno.Se um dos seus
olhos faz com que você peque, arranque-o! Pois é melhor você entrar no Reino de
Deus com um olho só do que ter os dois e ser jogado no inferno. Ali os vermes
que devoram não morrem, e o fogo nunca se apaga."
O texto evangélico que a liturgia propõe para este vigésimo sexto domingo do tempo comum –
Marcos 9,38-48 – é a continuidade daquele refletido no domingo passado (cf. Mc
9,30-37), e apresenta mais uma atitude de incoerência dos discípulos, seguida
da correção e catequese de Jesus. O contexto geral é o do caminho decisivo de
Jesus com os discípulos para Jerusalém, que culminará com os eventos da paixão,
morte e ressurreição. Com muita maestria, o evangelista Marcos diz que, mesmo
estando próximos, os discípulos se tornam, nesse itinerário, verdadeiros
opositores de Jesus, com um comportamento oposto ao que o Mestre ensinava.
Embora Jesus já tenha, nesse contexto, feito dois anúncios explícitos da sua
paixão (cf. Mc 8,31-33; 9,30-32), os discípulos continuam ignorando, preferindo
alimentar seus próprios anseios de grandeza, poder e exclusivismo, colocando-se,
assim, em oposição a Jesus.
A principal incoerência dos discípulos denunciada no Evangelho de hoje é
o exclusivismo e a tendência ao fechamento e fanatismo, expressos na atitude e
na fala do apóstolo João: “Mestre, vimos um homem expulsar demônios em
teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue” (v. 38).
Assim como a profissão de fé de Pedro – Tu és o Cristo! (Mc
8,27) – não representa uma afirmação pessoal, mas comunitária, ou seja, ele
afirmou em nome do grupo, também nesse trecho de hoje a postura de João tem uma
dimensão comunitária; é a expressão de todo o grupo de discípulos que
permanecia com uma mentalidade fechada e exclusivista. É importante recordar
que, no momento da formação do grupo dos Doze, juntamente com seu irmão Tiago,
João recebeu o nome de Boanerges, que significa “filhos do trovão” (cf. Mc
3,17), em alusão ao temperamento explosivo, arrogante, intolerante e ambicioso
dos dois. Além, dessa de hoje, há outras duas ocasiões em que essas
características desses dois discípulos irmãos se revelam: quando pedem a Jesus
para ocuparem as melhores posições no reino, um à direita e outro à esquerda
(cf. Mc 10,35-40), e quando queriam eliminar com fogo os samaritanos, somente
porque não os acolheram, no início do caminho para Jerusalém (cf. Lc 9,51-55).
Juntamente com Pedro, João e Tiago são os discípulos mais difíceis de lidar no
grupo; por isso, quando Jesus fica somente com eles, como no episódio da
transfiguração (cf. Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36), não se trata de privilégio,
mas de necessidade. Pelo comportamento e temperamento, ambos necessitavam de
uma catequese mais intensa.
A atividade de “expulsar demônios” nos evangelhos, e principalmente em
Marcos, significa a promoção da liberdade e da dignidade das pessoas. É abrir
as portas do Reino de Deus, tornando-o acessível a todas as pessoas. É a
difusão da boa nova que transforma vidas, rompendo com as estruturas de morte e
opressão vigentes em qualquer sistema. Uma atividade assim, de promoção plena
do bem das pessoas, não pode ser estranha ao programa e à mensagem de Jesus,
independente do grupo ou movimento a qual se pertença. Quem faz o bem ao
próximo, está em sintonia Deus. Ao afirmar que o homem estava “expulsando
demônios em nome de Jesus”, o evangelista evidencia que ele estava em sintonia
e comunhão plena com Jesus, mesmo sem pertencer ao grupo dos Doze, e nem
segui-los. A proibição imposta por João denuncia o fechamento e o fanatismo dos
discípulos. Uma atitude dessas coloca em risco a eficácia e a credibilidade do
Evangelho. Como uma proposta de vida de alcance universal, que visa a
libertação plena do ser humano em todas as suas dimensões, a mensagem de Jesus
não é propriedade de nenhum grupo ou instituição. Por isso, a repreensão.
A reação de Jesus é de clara reprovação à mesquinhez dos discípulos
liderados por João: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu
nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor” (vv.
39-40). Ora, “fazer milagres em nome de Jesus” significa estar em sintonia com
ele; só faz isso quem reconhece a sua autoridade e conduz a vida de acordo com
o Evangelho. Ninguém pode ser impedido de fazer o bem, mesmo que não pertença
ao mesmo grupo ou movimento. Proibir alguém de agir em nome de Jesus é querer
aprisionar a sua mensagem e delimitar a ação do Espírito Santo, o que é
impossível. Dos discípulos, exige-se abertura, compreensão e consciência de que
a mensagem do Evangelho não é propriedade, mas dom acessível a quem tem sede de
justiça e de amor. Com um simples provérbio, Jesus fecha a questão: “Quem
não é contra nós é a nosso favor”. Ser contra, significa optar pelo
mal e fechar-se aos valores do Reino; quem não faz isso, já está,
consequentemente, a favor e, portanto, apto a agir em seu nome, independente de
pertencer ou não a algum grupo religioso.
Como sempre, às repreensões de Jesus aos discípulos são seguidas de
catequese mais aprofundada e prática: “Em verdade eu vos digo: quem vos
der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua
recompensa” (v. 41). Embora seja um gesto, aparentemente, simples, dar
um copo de água era, para a mentalidade semita, uma das maiores demonstrações
de hospitalidade e acolhida. A recompensa, aqui, significa a pertença a Jesus e
sua comunidade. Essa pertença não depende de discursos ou formulações
doutrinárias, mas de gestos e atitudes que revelem amor e justiça, como dar um
simples copo de água a uma pessoa sedenta. O que importa, de acordo com o
evangelista, é que tudo seja feito em “nome de Jesus”, ou seja, em comunhão com
ele. Aqui, o ensinamento é dirigido exclusivamente aos discípulos: eles não
devem esperar muita coisa, nem grandes adesões; basta um simples gesto de
reconhecimento da pertença a Cristo, para que os destinatários sejam
recompensados, ou seja, entrem em comunhão com sua vida.
Na sequência, a catequese é continuada com a retomada da importância dos
“pequeninos” para o Reino de Deus, já introduzida no domingo passado com o
exemplo da criança: “E, se alguém escandalizar um destes pequeninos que
creem, melhor seria que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao
pescoço” (v. 42). Escandalizar, aqui, é criar obstáculo ou impedimento
à fé e à vida digna. O maior exemplo de escândalo numa comunidade é o espírito
de grandeza e busca pelo poder. “Pequeninos” é a síntese de todas as categorias
de pessoas vulneráveis e historicamente excluídas: pobres, mulheres, pecadores,
etc. Quando os membros da comunidade cristã são motivos de escândalo para essas
pessoas, isto é, quando não favorecem a acolhida e a inclusão, Jesus reprova e
adverte severamente. Por sinal, Jesus tolera quase tudo, inclusive que sua
mensagem seja rejeitada; a única coisa que ele não tolera é a indiferença e o
desprezo aos pequeninos, os seus prediletos. A sorte de quem os rejeita é
trágica. Ser jogado no mar com uma grande pedra amarrada ao pescoço é a certeza
de que esse corpo jamais será resgatado; assim, não poderia receber uma
sepultura digna e, consequentemente, não teria sequer direito à ressurreição
dos mortos do último dia, como acreditavam os judeus. Esse destino exclui
qualquer possibilidade de salvação. Dentre as tantas possibilidades de morte, a
mais temida pelos judeus era o afogamento no mar, devido ao risco de não ter o
corpo encontrado para ser sepultado. Daí, a ênfase de Jesus para mostrar que o
ser humano se auto condena quando se torna obstáculo na vida dos pequeninos.
Portanto, não é um convite para amputar membros do corpo, mas a ter o máximo
cuidado de pautar toda a vida em favor do bem.
A chamada de atenção aos discípulos continua com a demonstração de
certas ocasiões, através dos principais membros do corpo, que podem levar os
discípulos a causarem “escândalo” aos pequeninos. A mão, o pé e o olho (cf. vv.
43-47) eram, de fato, os membros do corpo responsáveis pelo bom ou mau
comportamento das pessoas, segundo a mentalidade semita. As mãos, representam
todo o agir da pessoa; quando a pessoa não age conforme o evangelho, é melhor
não tê-las, conforme essa mentalidade. Os pés representam a conduta, podendo
levar a pessoa por caminhos justos e injustos; é melhor não ter pé do que andar
por caminhos errados. O olho, como “lâmpada do corpo” (cf. Mt 6,22) é a porta
de entrada dos sentimentos e desejos alimentados no coração da pessoa; tudo o
que é processado no coração, sentimentos bons e maus, passou pelo olho. Diante
disso, se esses membros são usados para o mal, é melhor o ser humano privar-se
deles, do que ter um corpo são e uma vida perdida, sem sentido, ou seja, jogado
no fogo que nunca se apaga. O texto original não fala de inferno, como na
tradução litúrgica, mas de “geena” (em grego: γεενα). O “geena” era um vale onde ficava o lixão de Jerusalém; era sinônimo
de imundície e de fogo constante. Inclusive, corpos humanos já tinham sido lá
sacrificados, em cultos pagãos, por isso, esse local passou a ser símbolo de
condenação completa para os judeus. Além do fogo, lá predominava também o mau
cheiro constante. Era um símbolo concreto da negação da vida. Por ser depósito
de todo o lixo de uma grande cidade, numa época em que o saneamento não era
sequer imaginado, todos os tipos de resíduos iam para lá, por isso possuía
um “fogo que não se apaga” (v. 48).
Com essa linguagem tão severa, Jesus não está apontando as
possibilidades de uma vida futura, mas denunciando que não tem sentido algum a
vida que não é pautada pelo bem ao próximo e, em especial, aos mais
necessitados, ou seja, os pequeninos. “Geena” e fogo são imagens de uma vida
fora do Reino de Deus, Reino esse que não é um paraíso futuro, mas um projeto real
de vida para ser aplicado e vivido desde agora. Isso acontece quando a Boa Nova
de Jesus é aceita com todas as suas dimensões e exigências. A dinâmica do Reino
é incompatível com todas as formas de dominação, exclusivismo, autoritarismo e
falta de amor e justiça.
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