22 setembro - Para praticar o bem, as próprias paixões ajudam: ajudam quando não tomam o predomínio e se deixam guiar pela razão, a cujo serviço as devemos submeter com a graça de Deus. (L 207). São Jose Marello
Leitura do santo Evangelho segundo São Marcos 9,30-37 22 set 2024
"Jesus e os discípulos saíram daquele lugar e continuaram atravessando a Galiléia. Jesus não queria que ninguém soubesse onde ele estava porque estava ensinando os discípulos. Ele lhes dizia:
- O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens, e eles vão matá-lo; mas
três dias depois ele ressuscitará.
Eles não entendiam o que Jesus dizia, mas tinham medo de perguntar.
Jesus e os discípulos chegaram à cidade de Cafarnaum. Quando já estavam em
casa, Jesus perguntou aos doze discípulos:
- O que é que vocês estavam discutindo no caminho?
Mas eles ficaram calados porque no caminho tinham discutido sobre qual deles
era o mais importante.
Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse:
- Se alguém quer ser o primeiro, deve ficar em último lugar e servir a todos.
Aí segurou uma criança e a pôs no meio deles. E, abraçando-a, disse aos discípulos:
- Aquele que, por ser meu seguidor, receber uma criança como esta estará também
me recebendo. E quem me receber não recebe somente a mim, mas também aquele que
me enviou."
O Evangelho deste vigésimo
quinto domingo do tempo comum – Marcos 9,30-37 – apresenta o segundo
anúncio da paixão de Jesus, seguido da incompreensão dos discípulos que não
aceitavam um messias sofredor. À incompreensão dos discípulos, Jesus reage e
reforça a sua catequese, apresentando uma criança como exemplo para a comunidade,
mostrando que o Reino de Deus tem como protagonistas e destinatários os
pequenos e humildes, ao contrário do que pensavam os discípulos, que imaginavam
uma comunidade hierárquica, aos moldes dos sistemas humanos de dominação.
O texto divide-se
claramente em duas partes demarcadas pela dimensão espacial: a primeira (vv.
30-32), acontece no caminho, enquanto a segunda acontece na casa (vv. 33-37),
em Cafarnaum. Casa e caminho representam os dois cenários privilegiados para a
pregação de Jesus e para a vida da comunidade cristã, especialmente a
comunidade do evangelista Marcos que, rompida definitivamente com a sinagoga,
não tinha um espaço fixo para as suas reuniões. O caminho tem como significado
a instabilidade, os perigos e, ao mesmo tempo, o dinamismo e a dimensão
missionária da comunidade; é uma prova de que a Igreja nasceu para estar,
realmente, em saída. Já a casa, significa a necessidade das relações fraternas
e sinceras que devem marcar a vida da comunidade; é um espaço de acolhida,
compreensão e vivência do amor.
Como diz o
texto, “Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia. Ele não queria
que ninguém soubesse disso” (v. 30). Essa travessia pela Galileia
acontece após o episódio da transfiguração (cf. Mc 9,2-13) e a expulsão de um
espírito impuro de um jovem epilético (cf. Mc 9,14-29). Chegou um momento de
extrema necessidade de aprofundar o ensinamento sobre o seu destino aos
discípulos; por isso, Jesus prefere o anonimato e o isolamento das multidões
nessa fase da sua vida: “Pois estava ensinando a seus discípulos” (v.
31a). A incompreensão de Pedro após o primeiro anúncio da paixão (cf. Mc
8,31-35), como refletimos no domingo passado, foi um alerta para Jesus: os
discípulos ainda não tinham compreendido quase nada; por isso, era necessário
estar sozinho com eles para intensificar a catequese.
O conteúdo dessa
fase específica da catequese é exatamente aquilo que os discípulos mais tinham
dificuldade de compreender e aceitar, ou seja, o drama da paixão que se
aproximava cada vez mais, não como predestinação, mas como consequência das
opções feitas e posições assumidas até então por Jesus. Por isso, “dizia-lhes:
“O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas,
três dias após sua morte, ele ressuscitará” (v. 31bc). Esse é o
segundo anúncio da paixão. Enquanto os discípulos, conforme a ideologia
nacionalista, esperavam que o messias matasse, declarando guerra ao poder
romano para recuperar o trono dravídico-salomônico, Jesus afirma o contrário: é
ele quem vai morrer. Embora nesse segundo anúncio não esteja tão claro quem
serão seus algozes, ele já tinha declarado no primeiro: anciãos, sacerdotes e
escribas (cf. Mc 8,31), ou seja, as autoridades religiosas, até então
controladoras de Deus, agora inconformadas porque Jesus estava, com seu
ministério, apresentando um Deus completamente diferente. O Deus dos chefes era
cruel, vingativo e exigente, enquanto o Deus de Jesus é amoroso,
misericordioso, acolhedor e justo.
A incompreensão
dos discípulos continua, e até parece aumentar, gerando até medo: “Os
discípulos, porém, não compreendiam estas palavras e tinham medo de
perguntar” (v. 32). Se não compreendiam, muito menos aceitavam a
realidade como Jesus apresentava. Eles tinham medo de fazer perguntas porque
suspeitavam que a explicação de Jesus não correspondesse às suas expectativas
de triunfo e sucesso. Por isso, covardemente, preferem conversar entre si,
alimentando sonhos triunfalistas e distantes da proposta de Jesus. Porém, Jesus
os conhecia muito bem e sabia o que eles pensavam; lhes perguntará apenas por
protocolo. “Eles chegaram a Cafarnaum. Estando em casa, Jesus
perguntou-lhes: “O que discutis pelo caminho?” (v. 33). A cidade de
Cafarnaum, onde Jesus realizou boa parte do seu ministério, tem um significado
especial para a comunidade. É o ponto de partida da Boa Nova. Ao questionar os
discípulos em casa, nessa cidade, Jesus revela a necessidade de renovação
constante e de retorno às origens do chamado, com coragem para recomeçar. De
fato, com o caminho da paixão já delineado, se torna cada vez mais necessário
reavivar nos discípulos as motivações para o seguimento com bastante clareza.
Cientes do absurdo
e da incompatibilidade entre o que eles conversavam e o que Jesus lhes
apresentava, “eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido
quem era o maior” (v. 34). Com essa informação, o evangelista revela
que os discípulos estavam em total oposição ao projeto de Jesus. Ora, discutir
quem é o maior, é negar completamente o projeto de Reino de Deus como fraternidade
e igualdade. Essa discussão revela ambição e alimenta rivalidade, elementos
impensáveis para uma comunidade que deve viver o princípio da igualdade e do
amor. O silêncio deles denuncia a incoerência.
A atitude de Jesus
diante de tamanha incoerência dos discípulos não é de condenação, mas de
insistência no ensinamento e de renovação do chamado. Ao invés de abandoná-los,
Jesus prefere aprofundar a catequese, demonstrando uma imensa capacidade
pedagógica: “Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse: “Se alguém
quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a
todos!” (v. 35). Ao sentar-se para ensinar, Jesus reafirma sua
condição de mestre, o único maior naquele grupo. Chamando os doze para perto de
si, ele os convida, antes de tudo, a renovar a vocação originária, deturpada
pelos sentimentos de grandeza e ambição que eles tinham alimentado. Para
aprender e aceitar o ensinamento, é necessário que os discípulos estejam muito
próximos ao mestre, sendo influenciados somente por ele.
O ensinamento,
aqui, é bastante didático, e revela, mais uma vez, os dotes pedagógicos de
Jesus: bastam duas frases e um gesto para desconstruir os projetos de poder e
ambição dos discípulos. Eis a primeira frase: “Se alguém quiser ser o
primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” (v.
35). Enquanto os discípulos pensavam em poder e grandeza, tema da discussão no
caminho, Jesus mostra um caminho oposto. Só há uma forma de ser o primeiro na
comunidade: tornando-se servidor de todos. Tornar-se servidor de todos é o
mesmo que “renunciar a si mesmo”, como ele já tinha dito anteriormente (cf. Mc
8,34). O discipulado não é um caminho para o sucesso, mas para o serviço. O
sentido de ser discípulo é, portanto, a disposição de fazer para os outros e estar
sempre a serviço, desinteressadamente.
Concluindo a sua
catequese de contraponto às ambições de poder dos discípulos, Jesus faz um
gesto bastante significativo, e finaliza com uma frase relacionada ao
gesto: “Em seguida, pegou uma criança, colocou-a no meio deles e,
abraçando-a, disse: “Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que
estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que
me enviou” (vv. 36-37). Aqui está o ponto alto da sua catequese; não
basta falar, é necessário demonstrar com ações a veracidade da fala. O gesto de
pegar uma criança, é bastante provocatório, uma vez que, na época, a criança
não gozava de nenhuma estima e consideração, a não ser pelos próprios pais.
Tanto o mundo hebraico quanto o grego, tinham visões muito negativas a respeito
da criança, considerando-a uma pessoa inacabada e incapacitada para qualquer
coisa. Jesus, pelo contrário, via com outros olhos: a criança é sinal de
pequenez, mas também simboliza a capacidade de aprendizagem, tão necessária
para o discipulado.
Colocando a
criança no meio, Jesus a torna protagonista e centro da comunidade. O abraço é
sinal da acolhida e do amor que devem ser dispensados aos pequenos do Reino,
representados pela criança, os quais são todas as pessoas vulneráveis,
necessitadas e desprezadas. De modo bastante claro, Jesus diz que acolher as
pessoas desprezadas, representadas pela criança, é acolher a ele próprio e ao
Pai que lhe enviou. Desse modo, podemos concluir que as pessoas consideradas
pequenas, humildes, pobres, mulheres crianças e todas as categorias desprezadas
pela sociedade são destinatárias e protagonistas do Reino, porque devem ocupar
o centro da comunidade, uma vez que nelas se revelam Jesus e o Pai. A
comunidade é, de fato, cristã quando, ao invés de excluir, acolhe e coloca em
seu centro as pessoas historicamente condenadas e excluídas pela(s)
sociedade(s).
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