10 dezembro - De vossa parte, fazei tudo o que puderdes para vos manterdes
sempre com a vontade firme de servir unicamente a Deus, e Ele vos concederá vitória sobre todos os
vossos inimigos. (S 355). São Jose Marello
Marcos
1,1-8
"Início do Evangelho de Jesus Cristo,
Filho de Deus. Está escrito no profeta Isaías: "Eis que envio à tua frente
o meu mensageiro, e ele preparará teu caminho. Grita uma voz: 'No deserto abri
caminho do Senhor, endireitai as veredas para ele'". Assim veio João,
batizando no deserto e pregando um batismo de conversão, para o perdão dos
pecados. A Judéia inteira e todos os habitantes de Jerusalém saíam ao seu
encontro, e eram batizados no rio Jordão, confessando os seus pecados. João se
vestia de pêlos de camelo, usava um cinto de couro à cintura e alimentava-se de
gafanhotos e mel silvestre. Ele proclamava: "Depois de mim vem aquele que
é mais forte do que eu. Eu nem sou digno de, abaixando-me, desatar a correia de
suas sandálias. Eu vos batizei com água. Ele vos batizará com o Espírito
Santo"."
II DOMINGO DO ADVENTO
Neste segundo domingo do advento, a liturgia nos convida a ler e
refletir os primeiros versículos do Evangelho segundo Marcos: 1,1-8. Se trata
de um texto bastante rico e profundo. Como o advento é, para a liturgia, o
tempo por excelência de preparação para o Natal do Senhor, é importante
voltarmos o olhar para o princípio do evangelho, reconhecendo o papel dos
personagens que estiveram em tal princípio, como hoje recordamos a figura de
João, o Batista.
De maneira única em todo o Novo Testamento, assim Marcos inicia seu
escrito: “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (v.
1). Somente ele intitula sua obra de Evangelho, inaugurando um novo gênero
literário. Evangelho (em grego: euvaggeli,on –
euanguélion) significa boa notícia, boa nova, notícia agradável. Era uma
palavra mais utilizada na esfera política que religiosa. Na verdade,
“euanguélion” era a palavra que se usava para anunciar as notícias mais
importantes do império, como o nascimento de um filho do imperador e as
vitórias em uma guerra ou batalha. Ao utilizá-la para falar dos acontecimentos
referentes a Jesus, Marcos se assume como subversivo, afirmando que boa notícia
não é o que sai de Roma, através de decretos imperiais, mas o que sai de
Nazaré, na vida de um homem simples, corajoso e cheio de amor: Jesus.
Se Marcos se assume subversivo politicamente, aplicando “euanguélion” a
Jesus, é nítida também a sua subversão religiosa, ao abrir a “história” de
Jesus com a mesma palavra que se abre o Antigo Testamento, com o termo
grego VArch. – arkhê, cujo significado mais autêntico é princípio, ao
invés de início, como traz o texto litúrgico. O autor quer dizer que a história
da salvação tem, em Jesus, um novo princípio, um novo fundamento, desafiando a
religião oficial da época, até então, controladora do nome de Deus.
O homem do qual o evangelista irá falar ao longo do evangelho, Jesus,
é Cristo, ou seja, messias, e, ao mesmo tempo, Filho de
Deus. O termo Cristo (Cristoj - Cristós) é a tradução
grega de messias, assim, o evangelista ensina que o tempo da espera acabou: o
tão esperado messias libertador de Israel chegou, mas não como tinha ensinado o
magistério oficial, ou seja, ele não veio como rei, guerreiro e vencedor, mas
simples e pobre, embora não seja preocupação de Marcos narrar o nascimento de
Jesus, como fizeram Mateus e Lucas.
Ao afirmar que Jesus é também Filho de Deus, Marcos desafia,
ao mesmo tempo, tanto o império quanto a religião da época. Ora, o judaísmo
esperava um messias filho de Davi, o qual viria para proteger e libertar
somente o povo de Israel; ao denominar Jesus como Filho de Deus, Marcos diz que
Jesus veio para a humanidade toda, e não para um povo exclusivo, ao mesmo tempo
em que desmascara a religião imperial que cultuava o imperador romano como
filho de Deus. Portanto, de modo simples, mas ao mesmo tempo profundo, Marcos
enfrenta os dois poderes mais fortes e organizados da época na terra de Jesus:
o império romano e a religião oficial judaica.
Até aqui, refletimos apenas sobre o primeiro versículo, o qual funciona
como título e introdução geral a todo o Evangelho segundo Marcos. Na
continuidade, do segundo versículo em diante, o evangelista apresenta a figura
de João, o Batista, e sua missão profética de precursor de Jesus. Para
introduzir a missão de João, Marcos recorre à tradição profética: “Está
escrito no livro do profeta Isaías: ‘Eis que envio o meu mensageiro à tua
frente, para preparar o teu caminho. Esta é a voz daquele que grita no deserto:
‘preparai o caminho do Senhor, endireitai suas estradas!’ ” (vv. 2-3).
Aqui, embora mencione somente Isaías, a citação é, na verdade, uma mescla de
Isaías com Malaquias (cf. Ml 3,1; Is 40,3). O objetivo do profeta é assegurar
que a missão de João continua e atualiza o profetismo bíblico tradicional, do
qual Jesus é o seu verdadeiro cumprimento.
Após a fundamentação bíblico-profética, o evangelista descreve a missão
de João e os seus efeitos, dizendo que ele “apareceu no deserto,
pregando um batismo de conversão para a remissão dos pecados” (v.
4). Ora, o deserto (em grego: evrh,moj – erémos) é o
lugar ideal para a relação entre Deus e o seu povo; representa uma etapa no
processo de libertação, como aconteceu no primeiro êxodo; por isso, quando o
povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de
retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (cf. Os 2,14; 9,10;
13,5; Am 2,10; 5,25). Assim, a presença de João no deserto é um convite para
Israel romper com as estruturas vigentes e retornar às suas origens. O batismo
de conversão serve como chamada de atenção: todos tem um certo grau de culpa na
situação de degradação do país. É necessário que cada um tome consciência de
sua responsabilidade na construção de um mundo novo, através da conversão.
A pregação de João, como proposta de libertação, atraía “toda a
região da Judeia e todos os moradores de Jerusalém iam ao seu encontro” (v.
5a). Certamente, o evangelista exagera aqui, mas faz parte de suas intenções
teológicas. Com isso, ele está propondo que um novo êxodo estava para
acontecer, iniciando com a pregação do Batista e se completando com a missão de
Jesus. A antiga terra prometida, principalmente a cidade de Jerusalém, tinha se
transformado em terra de escravidão. Dessa vez, não era um faraó o algoz, mas a
própria casta sacerdotal do templo. Foi dessa gente que controlava a vida do
povo e explorava em nome de Deus que Jesus veio libertar, em primeiro lugar.
A religião institucionalizada era sinal de exploração, abuso de poder.
E, de todas as formas de exploração, a pior é aquela que usa o nome de Deus, ou
seja, a exploração religiosa. Mais uma vez, a tradução litúrgica omite um dado
importante do texto, ao dizer que “os moradores iam” ao
encontro de João. Na língua original, o grego, o autor empregam o
verbo evkeporeuomai – “ekporêuomai”, cujo significado é sair,
libertar-se; por isso, a tradução correta seria “toda a região da
Judeia e todos os moradores de Jerusalém, saíam...”. Saíam porque o julgo
da exploração estava pesado demais, e viam na pregação do Batista um sinal de
luz e libertação. O evangelista antecipa a religião de Jesus: menos
institucional e mais profética.
As pessoas que saíam das antigas estruturas, “confessavam os
seus pecados e João as batizava no rio Jordão” (v. 5b). A confissão
aqui, não é um rito, mas um reconhecimento do pecado e arrependimento, conforme
reza um salmista: “Confessei a ti o meu pecado, e minha iniquidade não te
encobri; eu disse: "Vou a Iahweh confessar a minha iniquidade!" (Sl
32,4). Ser batizado no Jordão quer dizer atravessá-lo, passar por ele, como
passou o povo do primeiro êxodo; de fato, a travessia do Jordão foi a última
etapa da longa caminhada do povo de Deus antes de entrar na terra prometida, já
sob a liderança de Josué, após a morte de Moisés (cf. Js 1,2). Assim, a
proposta de João é um convite a um novo êxodo, ou seja, uma nova libertação que
se aproxima, e só pode participar quem faz a experiência do deserto e da
travessia, ou seja, quem passa de uma mentalidade antiga para uma nova.
Além das citações de Isaías e Malaquias, a descrição que o evangelista
faz de João também reforça suas credenciais de profeta: “João se vestia
com uma pele de camelo e comia gafanhotos e mel do campo” (v. 7). De
fato, Elias, um dos maiores profetas da história de Israel, é apresentado em
2Rs 1,8 com características semelhantes. É mais uma prova de que o verdadeiro
profeta é aquele que anuncia com palavras, ações e, principalmente, com o
testemunho; a vida simples de João comprova esse testemunho e ainda serve de
contraposição à vida opulenta da elite religiosa e política de Jerusalém. Essa
descrição funciona como um apelo do evangelista para a comunidade cristã
configurar-se como religião profética, combatendo as primeiras tendências de
institucionalização do cristianismo.
Até aqui, a pregação de João, como convite à conversão, fora apenas
mencionada, mas nenhuma palavra sua fora ainda citada. Eis, então: “Depois
de mim, virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para
desamarrar suas sandálias. Eu vou batizei com água, mas ele vos batizará com o
Espírito Santo” (vv. 7-8). Certamente, muitas pessoas confundiam João
com o messias, por isso, ele esclarece. Como verdadeiro profeta, sabe que seu
papel, na história da salvação é de instrumento de Deus, Aquele que é maior! A
referência ao gesto de desamarrar as sandálias costuma confundir bastante as
interpretações; mais que um simples gesto de humildade do Batista, é uma
referência a Israel como esposa, fazendo uso da lei judaica do levirato: tirar
a sandália significava apropriar-se do direito de tomar a mulher (viúva) como
esposa (cf. Rt 3,5-11). Assim, João deixa claro que não é ele o esposo, porque
essa missão não lhe compete. O direito de fecundar Israel é exclusivo de Jesus,
para tornar novamente fértil aquela esposa explorada e tornada estéril pela
elite sacerdotal de Jerusalém.
João administrava apenas um rito: o batismo com água, o qual era somente
um sinal do batismo por excelência: com o Espírito Santo. Esse batismo é
definitivo, é o cumprimento de profecias e condição para o povo de Israel
voltar à condição de povo de Deus (cf. Ez 36,24-28), e ao mesmo tempo sinal de
universalização da salvação: o Espírito Santo, como superação e substituição da
Lei, dará condições, ao ser acolhido, para que todos os povos sejam
contemplados com a libertação inaugurada por Jesus.
Somos, então, neste segundo domingo do advento,
convidados a rever nossa prática religiosa, e tomar uma decisão, fazendo um
êxodo pessoal: abraçar a religião profética, abandonando todas as práticas das
antigas estruturas, renovando a maneira de conceber Deus e abrindo-se ao
Espírito Santo, dom de Jesus, o balizador por excelência.
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