27º Domingo do Tempo Comum - Ano B
3
Outubro 2021
Tema do 27º Domingo do Tempo Comum
As leituras do 27º Domingo do Tempo
Comum apresentam, como tema principal, o projeto ideal de Deus para o homem e
para a mulher: formar uma comunidade de amor, estável e indissolúvel, que os
ajude mutuamente a realizarem-se e a serem felizes. Esse amor, feito doação e
entrega, será para o mundo um reflexo do amor de Deus.
A primeira leitura diz-nos que Deus criou o homem e a mulher para se
completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o homem e a
mulher formarão "uma só carne". Ser "uma só carne" implica
viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a
vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro
vínculo.
No Evangelho, Jesus, confrontado com a Lei judaica do divórcio, reafirma o
projeto ideal de Deus para o homem e para a mulher: eles foram chamados a
formar uma comunidade estável e indissolúvel de amor, de partilha e de doação.
A separação não está prevista no projeto ideal de Deus, pois Deus não considera
um amor que não seja total e duradouro. Só o amor eterno, expresso num
compromisso indissolúvel, respeita o projeto primordial de Deus para o homem e
para a mulher.
A segunda leitura lembra-nos a "qualidade" do amor de Deus pelos
homens... Deus amou de tal forma os homens que enviou ao mundo o seu Filho
único "em proveito de todos". Jesus, o Filho, solidarizou-Se com os
homens, partilhou a debilidade dos homens e, cumprindo o projeto do Pai,
aceitou morrer na cruz para dizer aos homens que a vida verdadeira está no amor
que se dá até às últimas consequências. Ligando o texto da Carta aos Hebreus
com o tema principal da liturgia deste domingo, podemos dizer que o casal
cristão deve testemunhar, com a sua doação sem limites e com a sua entrega
total, o amor de Deus pela humanidade.
LEITURA I - Gn 2,18-24
Leitura do Livro do Génesis
Disse o Senhor Deus:
«Não é bom que o homem esteja só:
vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele».
Então o Senhor Deus, depois de ter formado da terra
todos os animais do campo e todas as aves do céu,
conduziu-os até junto do homem,
para ver como ele os chamaria,
a fim de que todos os seres vivos fossem conhecidos
pelo nome que o homem lhes desse.
O homem chamou pelos seus nomes
todos os animais domésticos, todas as aves do céu
e todos os animais do campo.
Mas não encontrou uma auxiliar semelhante a ele.
Então o Senhor Deus fez descer sobre o homem
um sono profundo
e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma costela,
fazendo crescer a carne em seu lugar.
Da costela do homem o Senhor Deus formou a mulher
e apresentou-a ao homem.
Ao vê-la, o homem exclamou:
«Esta é realmente osso dos meus ossos e a minha carne.
Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem».
Por isso, o homem deixará pai e mãe,
para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne.
AMBIENTE
O texto de Gn 2,4b-3,24 - conhecido
como relato jahwista da criação - é, de acordo com a maioria dos comentadores,
um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei
Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante, colorido, pitoresco. Parece ser
obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas,
coloridas e fortes. Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma
reportagem jornalística de acontecimentos passados na aurora da humanidade. A
finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que
ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer dizer-nos que na origem da
vida e do homem está Jahwéh. Trata-se, portanto, de uma página de catequese e
não de um tratado destinado a explicar cientificamente as origens do mundo e da
vida.
Para apresentar essa catequese aos homens do séc. X a.C., os teólogos jahwistas
utilizaram elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por
exemplo, a formação do homem "do pó da terra" é um elemento que
aparece sempre nos mitos de origem mesopotâmicos); no entanto, transformaram e
adaptaram os símbolos retirados das narrações lendárias de outros povos,
dando-lhes um novo enquadramento, uma nova interpretação e pondo-os ao serviço
da catequese e da fé de Israel. Ou seja: a linguagem e a apresentação literária
das narrações bíblicas da criação apresentam paralelos significativos com os
mitos de origem dos povos da zona do Crescente Fértil; mas as conclusões
teológicas - sobretudo o ensinamento sobre Deus e sobre o lugar que o homem
ocupa no projeto de Deus - são muito diferentes.
O texto que nos é hoje proposto como primeira leitura situa-nos no "jardim
do Éden", um espaço ideal onde Deus colocou o homem que criou, um ambiente
de felicidade material onde todas as exigências da vida humana estavam
satisfeitas. É um lugar de água abundante e com muitas árvores (para quem
sentia pesar sobre si a ameaça do deserto árido, o ideia de felicidade seria um
lugar com muita água, um clima de frescura, um ambiente de árvores e de verdura
abundante). O homem tinha, então, tudo para ser feliz? Ainda não. Na
perspectiva do catequista jahwista, o homem não estava plenamente realizado,
pois faltava-lhe alguém com quem compartilhar a vida e a felicidade. O homem
não foi criado para viver sozinho, mas para viver em relação. É esse problema
que Deus, com solicitude e amor, vai resolver...
MENSAGEM
Depois de criar o homem e de o
colocar no "jardim" da felicidade, Deus constatou a solidão do homem
e quis dar-lhe solução. Como?
Num primeiro momento, Deus fez desfilar diante do homem "todos os animais
do campo e todas as aves do céu", a fim de que o homem os chamasse
"pelos seus nomes" (vers. 19). Segundo as ideias vigentes no Médio
Oriente antigo, o facto de "dar um nome" era, antes de mais, um ato
de domínio e de posse. Por outro lado, o facto de Deus ter trazido os animais
para que o homem lhes desse um nome era, na perspectiva do catequista jahwista,
o reconhecimento por parte de Deus da autonomia do homem e a associação do
homem à obra criadora e ordenadora de Deus. A autoridade sobre os outros seres
criados e a associação do homem à obra criadora de Deus responderá ao desejo de
felicidade completa que o homem sente e resolverá o problema da sua solidão?
Não. O homem não encontrou, nesse mundo animal que Deus lhe confiou, "uma
auxiliar semelhante a ele" (vers. 20). Por muito rico e desafiador que
fosse esse mundo novo que lhe foi apresentado, o homem não encontrou aí a ajuda
e o complemento que esperava. Para que o homem se realize completamente, Deus
vai intervir de novo.
A nova ação de Deus começa com um "sono profundo" do homem. Depois,
Deus, atuando como um hábil cirurgião, tirou parte do corpo do homem (o texto
fala da "zela'", que se tem traduzido como "costela"; contudo,
a palavra pode significar "lado" ou "costado") e com ela
fez a mulher (vers. 21-22). Porquê o "sono profundo" do homem"?
Porque, de acordo com a concepção do autor jahwista, criar era segredo de Deus
e o homem não podia testemunhar esse momento solene e misterioso; restava-lhe
admirar a criação de Deus e adorá-lo pelas suas obras admiráveis... Depois de
ter "construído" a mulher, Jahwéh acompanha-a à presença do homem. A
mulher é aqui apresentada como uma noiva conduzida à presença do noivo e Deus como
o "padrinho" desse noivado. O homem, desperto do "sono
profundo", acolhe a mulher com um grito de alegria e reconhece-a como a
companhia que lhe fazia falta, o seu complemento, o seu outro eu: "Esta é
realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne" (vers. 23a). O homem
(vers. 23b) dá à sua companheira o nome de "mulher" (em hebraico:
'ishah) porque foi tirada do homem (em hebraico: 'ish). A proximidade das duas
palavras sugere a proximidade entre o homem e a mulher, a sua igualdade
fundamental em dignidade, a sua complementaridade, o seu parentesco.
O nosso texto termina com um comentário que não é de Deus, nem do homem, nem da
mulher, mas do catequista jahwista: "por isso, o homem deixará pai e mãe
para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne" (vers. 24). Este
comentário pretende ser a resposta a uma questão bem concreta: de onde vem essa
força poderosa que é o amor e que é mais forte do que o vínculo que nos liga
aos próprios pais? Para o catequista jahwista, o amor vem de Deus, que fez o
homem e a mulher de uma só carne; por isso, homem e mulher buscam essa unidade
e estão destinados, fatalmente, a viver em comunhão um com o outro.
ATUALIZAÇÃO
• "Não é bom que o homem esteja
só". Estas palavras, postas pelo autor jahwista na boca de Deus, sugerem
que a realização plena do homem acontece na relação e não na solidão. O homem
que vive fechado em si próprio, que escolhe percorrer caminhos de egoísmo e de
auto-suficiência, que recusa o diálogo e a comunhão com aqueles que caminham a
seu lado, que tem o coração fechado ao amor e à partilha, é um homem
profundamente infeliz, que nunca conhecerá a felicidade plena. Por vezes a
preocupação com o dinheiro, com a realização profissional, com o estatuto
social, com o êxito levam os homens a prescindir do amor, a renunciar à
família, a não ter tempo para os amigos... E um dia, depois de terem acumulado
muito dinheiro ou de terem chegado à presidência da empresa, constatam que
estão sozinhos e que a sua vida é estéril e vazia. A Palavra de Deus que nos é
hoje proposta deixa um aviso claro: a vocação do homem é o amor; a solidão,
mesmo quando compensada pela abundância de bens materiais, é um caminho de
infelicidade.
• Por vezes, certos círculos
religiosos mais fechados desvalorizam o amor humano, consideram o casamento
como um estado inferior de realização da vocação cristã e vêm na sexualidade
algo de pecaminoso. Não é esta a perspectiva que a Palavra de Deus nos
apresenta... No nosso texto, o amor aparece como algo que está, desde sempre,
inscrito no projeto de Deus e que é querido por Deus. Deus criou o homem e a
mulher para se ajudarem mutuamente e para partilharem, no amor, as suas vidas.
É no amor e não na solidão que o homem encontra a sua realização plena e o
sentido para a sua existência.
• Homem e mulher são, de acordo com o
nosso texto, iguais em dignidade. Eles são "da mesma carne", em
igualdade de ser, partícipes do mesmo destino; completam-se um ao outro e
ajudam-se mutuamente a atingir a realização. São, portanto, iguais em dignidade.
Esta realidade exige que homem e mulher se respeitem absolutamente um ao outro;
e exclui, naturalmente, qualquer atitude que signifique dominação, escravidão,
prepotência, uso egoísta do outro.
SALMO
RESPONSORIAL - Salmo 127 (128)
Refrão: O Senhor nos abençoe em toda
a nossa vida.
Feliz de ti que temes o Senhor
e andas nos seus caminhos.
Comerás do trabalho das tuas mãos,
serás feliz e tudo te correrá bem.
Tua esposa será como videira fecunda
no íntimo do teu lar;
teus filhos como ramos de oliveira,
ao redor da tua mesa.
Assim será abençoado o homem que teme
o Senhor.
De Sião o Senhor te abençoe:
vejas a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida;
e possas ver os filhos dos teus filhos. Paz a Israel.
LEITURA II - Heb 2,9-11
Leitura da
Epístola aos hebreus
Irmãos:
Jesus, que, por um pouco, foi inferior aos Anjos,
vemos agora coroado de glória e de honra
por causa da morte que sofreu,
pois era necessário que, pela graça de Deus,
experimentasse a morte em proveito de todos.
Convinha, na verdade, que Deus,
origem e fim de todas as coisas,
querendo conduzir muitos filhos para a sua glória,
levasse à glória perfeita, pelo sofrimento,
o Autor da salvação.
Pois Aquele que santifica e os que são santificados
procedam todos de um só.
Por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos.
AMBIENTE
A Carta aos Hebreus é um sermão de um
autor cristão anónimo, provavelmente elaborado nos anos que antecederam a
destruição do Templo de Jerusalém (ano 70). Destina-se a comunidades cristãs
não identificadas (o título "aos hebreus" foi-lhe colado
posteriormente e provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao
ritual dos "sacrifícios" que a obra apresenta). Trata-se, em qualquer
caso, de comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que
vivem num ambiente hostil à fé... Os membros dessas comunidades perderam já o
fervor inicial pelo Evangelho, deixaram-se contaminar pelo desânimo e começam a
ceder à sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos
apóstolos... O objetivo do autor deste "discurso" é estimular a
vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé.
A Carta aos Hebreus apresenta - recorrendo à linguagem da teologia judaica - o
mistério de Cristo, o sacerdote por excelência - através de quem os homens têm
acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O
autor aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse facto:
postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos
nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um
contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor
oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz
de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela
perseguição.
O texto que nos é proposto está incluído na primeira parte da Carta (cf. Heb
1,5-2,18). Aí, o autor recolhe e repete aquilo que a catequese primitiva
afirmava sobre o mistério de Cristo: a sua encarnação, a sua paixão e morte, a
sua glorificação pela ressurreição. Ao longo destes dois capítulos, o autor vai
afirmando a superioridade de Jesus em relação a todas as criaturas,
nomeadamente em relação aos anjos.
MENSAGEM
Jesus aceitou despojar-se das suas
prerrogativas divinas e fazer-se "por um pouco, inferior aos anjos" a
fim de que, pelo dom da sua vida até à morte, se cumprisse o projeto salvador
do Pai para os homens (vers. 9).
Depois desta afirmação de princípio, o autor da Carta aos Hebreus vai
aprofundar a sua reflexão e explicar porque é que Jesus teve que passar pela
humilhação da cruz (a explicação é bem mais longa do que a leitura que nos é
proposta e vai do versículo 10 ao versículo 18).
A questão da paixão e morte de Cristo era uma "conveniência" do projeto
de salvação que Deus tinha para o homem ("convinha" - vers. 10). O
que é que isso significa? O objetivo de Deus é que o homem cresça até chegar à
vida plena. Ora, para fazer com que a humanidade atinja esse fim, Deus deu-lhe
um guia - Jesus Cristo. Ele devia mostrar, com a sua vida e o seu exemplo, que
se chega à plenitude da vida cumprindo integralmente a vontade do Pai e fazendo
da existência um dom de amor aos irmãos. A cruz foi a expressão máxima e total
dessa vida de entrega aos desígnios de Deus e de doação aos irmãos. Morrendo
por amor, Jesus ensinou aos homens como é que eles devem viver, qual o caminho
que eles devem percorrer, a fim de chegarem à plenitude da vida, à felicidade
sem fim; morrendo por amor e ressuscitando logo a seguir para a vida plena,
Jesus libertou os homens do medo paralisante da morte e mostrou-lhes que a
morte não é o fim da linha para quem vive na entrega a Deus e na doação aos
irmãos.
Ao assumir a natureza humana, ao fazer-Se solidário com os homens, ao fazer-Se
irmão dos homens, Cristo (Aquele que santifica) inseriu os homens (os que são
santificados) na órbita de Deus e mostrou-lhes o caminho a seguir para integrar
a família de Deus (vers. 11).
ATUALIZAÇÃO
• A encarnação, paixão e morte de
Jesus atestam, antes de mais, o incrível amor de Deus pelos homens. É o amor de
alguém que enviou o próprio Filho para fazer da sua vida um dom, até à morte na
cruz, a fim de mostrar aos homens o caminho da vida plena e definitiva.
Trata-se de uma realidade que a Palavra de Deus nos recorda cada domingo; e
trata-se de uma realidade que não deve cessar de nos espantar e de nos levar à
gratidão e ao amor.
• A atitude de aceitação
incondicional do projeto do Pai assumida por Cristo contrasta com o egoísmo e a
auto-suficiência de Adão face às propostas de Deus. A obediência de Cristo
trouxe vida plena ao homem; a desobediência de Adão trouxe sofrimento e morte à
humanidade. O exemplo de Cristo convida-nos a viver na escuta atenta e na
obediência radical às propostas de Deus: esse caminho é gerador de vida
verdadeira. Quando o homem prescinde de Deus e das suas propostas e decide que
é ele quem define o caminho a seguir, fatalmente resvala para projetos de
ambição, de orgulho, de injustiça, de morte; quando o homem escuta e acolhe os
desafios de Deus, aprende a amar, a partilhar, a servir, a perdoar e torna-se
uma fonte de bênção para todos aqueles que caminham ao seu lado.
• Jesus fez-Se homem, enfrentou a
condição de debilidade dos homens e morreu na cruz. No entanto, a sua
glorificação mostrou que a morte não é o final do caminho para quem faz da vida
uma escuta atenta dos planos de Deus e uma doação de amor aos irmãos. Dessa
forma, Ele libertou os homens do medo da morte. Agora, podemos enfrentar a
injustiça, a opressão, as forças do mal que oprimem os homens, sem medo de
morrer: sabemos que quem vive como Jesus não fica prisioneiro da morte, mas
está destinado à vida verdadeira e eterna.
ALELUIA - 1 Jo 4,12
Aleluia. Aleluia.
Se nos amamos uns aos outros, Deus
permanece em nós
e o seu amor em nós é perfeito.
EVANGELHO
- Mc 10,2-16
Evangelho
de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Naquele
tempo,
Aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova
e perguntaram-Lhe:
«Pode um homem repudiar a sua mulher?»
Jesus disse-lhes:
«Que vos ordenou Moisés?»
Eles responderam:
«Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio,
para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes:
«Foi por causa da dureza do vosso coração
que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, 'Deus fê-los homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne'.
Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Em casa, os discípulos interrogaram-no de novo
sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então:
«Quem repudiar a sua mulher e casar com outra,
comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro,
comete adultério».
Apresentaram
a Jesus umas crianças
para que Ele lhes tocasse,
mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes:
«Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis:
dos que são como elas é o reino de Deus.
Em verdade vos digo:
Quem não acolher o reino de Deus como uma criança,
não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a abençoá-las,
impondo a mão sobre elas.
AMBIENTE
Despedindo-se definitivamente da
Galileia, Jesus continua o seu caminho para Jerusalém, ao encontro do seu
destino final. O episódio de hoje situa-nos "na região da Judeia, para
além do Jordão" (vers. 1) - isto é, no território trans jordânico da
Pereia, território governado por Herodes Antipas, o mesmo que havia assassinado
João Baptista quando este o criticou por haver abandonado a sua esposa
legítima. Aí, Jesus volta a confrontar-Se com as multidões e a dirigir-lhes os
seus ensinamentos. Os discípulos, contudo, continuam a rodear Jesus e a
beneficiar de uma instrução especial.
Entram de novo em cena os fariseus, não para escutar as suas propostas, mas
para O experimentar e para Lhe apanhar uma declaração comprometedora. São esses
fanáticos da Lei que vão proporcionar a Jesus a oportunidade de Se pronunciar
sobre uma questão delicada e comprometedora: o matrimónio e o divórcio.
Tratava-se, na realidade, de uma questão "quente" e não totalmente
consensual nas discussões dos "mestres" de Israel. A Lei de Israel
permitia o divórcio ("quando um homem tomar uma mulher e a desposar, se
depois ela deixar de lhe agradar, por ter descoberto nela algo de
inconveniente, escrever-lhe-á um documento de divórcio, entregar-lho-á em mão e
despedi-la-á de sua casa" - Dt 24,1); mas não era totalmente clara acerca
das razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher pelo marido. Na época
de Jesus, as duas grandes escolas teológicas do tempo divergiam na
interpretação da Lei do divórcio. A escola de Hillel ensinava que qualquer
motivo, mesmo o mais fútil (porque a esposa cozinhava mal ou porque o marido
gostava mais de outra), servia para o homem despedir a mulher; a escola de
Shammai, mais rigorosa, defendia que só uma razão muito grave (o adultério ou a
má conduta da mulher) dava ao marido o direito de repudiar a sua esposa. A
mulher, por sua vez, era autorizada a obter o divórcio em tribunal somente no
caso de o marido estar afetado pela lepra ou exercer um ofício repugnante.
É nesta discussão de contornos pouco claros que os fariseus procuram envolver
Jesus. Uma resposta negativa por parte de Jesus seria, certamente, interpretada
como uma condenação do matrimónio de Herodes Antipas com Herodíades, a sua
cunhada. A pergunta dos fariseus insere-se, provavelmente, na tentativa de
encontrar razões para eliminar Jesus.
MENSAGEM
Diante da questão posta pelos
fariseus ("pode um homem repudiar a sua mulher?" - vers. 2), Jesus
começa por recordar-lhes o estado da questão na perspectiva da Lei ("que
vos ordenou Moisés?" - vers. 3). Tal não significa, contudo, que Jesus Se
identifique com o posicionamento da Lei a propósito da questão do divórcio.
Efetivamente, a Lei permite o divórcio ("Moisés permitiu que se passasse
um certificado de divórcio para se repudiar a mulher" - vers. 4); contudo,
essa condescendência da Lei não resulta do projeto de Deus para o homem e para
a mulher, mas é o resultado da "dureza do coração" dos homens. As
prescrições de Moisés não definem o quadro ideal do amor do homem e da mulher,
mas apenas regulam o compromisso matrimonial, tendo em conta a mediocridade
humana.
Em contraste com a permissividade da Lei, Jesus vai apresentar o projeto
primordial de Deus para o amor do homem e da mulher. Citando livremente Gn 1,27
e Gn 2,24, Jesus explica que, no projeto original de Deus, o homem e a mulher
foram criados um para o outro, para se completarem, para se ajudarem, para se
amarem. Unidos pelo amor, o homem e a mulher formarão "uma só carne".
Ser "uma só carne" implica viverem em comunhão total um com o outro,
dando-se um ao outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que
é mais forte do que qualquer outro vínculo. A separação será sempre o fracasso
do amor; não está prevista no projeto ideal de Deus, pois Deus não considera um
amor que não seja total e duradouro. Só o amor eterno, expresso num compromisso
indissolúvel, respeita o projeto primordial de Deus para o homem e para a
mulher.
A perspectiva de Jesus acerca da questão é a seguinte: nessa nova realidade que
Deus quer propor ao homem (o Reino de Deus), chegou o momento de abandonar a
facilidade, a mesquinhez, as meias-tintas e de apontar para um patamar mais
alto. Ora, no que diz respeito ao matrimónio, o patamar mais alto é o projeto
inicial de Deus para o homem e para a mulher, que previa um compromisso de amor
estável, duradouro, indissolúvel.
Para os discípulos (que anteriormente, em diversas situações, tiveram
dificuldade em passar da lógica do mundo para a lógica de Deus), contudo, o
discurso de Jesus é difícil de entender; por isso, quando chegam a casa, pedem
a Jesus explicações suplementares (vers. 10). Jesus reitera que a relação entre
o homem e a mulher se deve enquadrar no projeto inicial de Deus e não nas
facilidades concedidas pela Lei de Moisés. A perspectiva de Deus é que marido e
mulher, unidos pelo amor, formem uma comunidade de vida estável e indissolúvel.
O divórcio não entra nesse projeto. Marido e esposa, em igualdade de
circunstâncias, são responsáveis pela edificação da comunidade familiar e por
evitar o fracasso do amor (vers. 11-12).
O texto que nos é proposto termina com uma cena em que Jesus acolhe as
crianças, defende-as e abençoa-as (vers. 13-16). As crianças são, aqui, uma
espécie de contraponto ao orgulho e arrogância com que os fariseus se
apresentam a Jesus, bem como à dificuldade que os discípulos revelaram, nas
cenas precedentes, para acolher a lógica do Reino... As crianças são simples,
transparentes, sem calculismos; não têm prestígio ou privilégios a defender;
entregam-se confiadamente nos braços do pai e dele esperam tudo, com amor. Por
isso, as crianças são o modelo do discípulo. O Reino de Deus é daqueles que,
como as crianças, vivem com sinceridade e verdade, sem se preocuparem com a
defesa dos seus interesses egoístas ou dos seus privilégios, acolhendo as
propostas de Deus com simplicidade e amor. Quem não é "criança", isto
é, quem percorre caminhos tortuosos e calculistas, quem não renuncia ao orgulho
e auto-suficiência, quem despreza a lógica de Deus e só conta com a lógica do
mundo (também na questão do casamento e do divórcio), quem conduz a própria
vida ao sabor de interesses e valores efémeros, quem não aceita questionar os
próprios raciocínios e preconceitos, não pode integrar a comunidade do Reino.
ATUALIZAÇÃO
• O Evangelho deste domingo
apresenta-nos o projeto ideal de Deus para o homem e para a mulher que se amam:
eles são convidados a viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao
outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte
do que qualquer outro vínculo. O fracasso dessa relação não está previsto nesse
projeto ideal de Deus. O amor de um homem e de uma mulher que se comprometem
diante de Deus e da sociedade deve ser um amor eterno e indestrutível, que é
reflexo desse amor que Deus tem pelos homens. Este projeto de Deus não é uma
realidade inatingível e impossível: há muitos casais que, dia a dia, no meio
das dificuldades, lutam pelo seu amor e dão testemunho de um amor eterno e que
nada consegue abalar.
• As telenovelas, os valores da moda,
a opinião pública, têm-se esforçado por apresentar o fracasso do amor como uma
realidade normal, banal, que pode acontecer a qualquer instante e que resolve
facilmente as dificuldades que duas pessoas têm em partilhar o seu projeto de
amor. Para os casais cristãos, o fracasso do amor não é uma normalidade, mas
uma situação extrema, uma realidade excepcional. Para os casais cristãos, o
divórcio não deve ser um remédio simples e sempre à mão para resolver as
pequenas dificuldades que a vida todos os dias apresenta. À partida, o
compromisso de amor não deve ser uma realidade efémera, sujeito a projetos
egoístas e a planos superficiais, que terminam quando surgem dificuldades ou
quando um dos dois é confrontado com outras propostas. Para o casal que quer
viver na dinâmica do Reino, a separação não deve ser uma proposta sempre em
cima da mesa. Marido e esposa têm que esforçar-se por realizar a sua vocação de
amor, apesar das dificuldades, das crises, das divergências e dos problemas
que, dia a dia, a vida lhes vai colocando. A Igreja é chamada a ser no mundo,
mesmo contra a corrente, testemunha do projeto ideal de Deus.
• Apesar de tudo, a vida dos homens e
das mulheres é marcada pela debilidade própria da condição humana. Nem sempre
as pessoas, apesar do seu esforço e da sua boa vontade, conseguem ser fiéis aos
ideais que Deus propõe. A vida de todos nós está cheia de fracassos, de
infidelidades, de falhas. Nessas circunstâncias, a comunidade cristã deve usar
de muita compreensão para aqueles que falharam (muitas vezes sem culpa) na
vivência do seu projeto de amor. Em nenhuma circunstância as pessoas
divorciadas devem ser marginalizadas ou afastadas da vida da comunidade cristã.
A comunidade deve, em todos os instantes, acolher, integrar, compreender,
ajudar aqueles a quem as circunstâncias da vida impediram de viver o tal projeto
ideal de Deus. Não se trata de renunciar ao "ideal" que Deus propõe;
trata-se de testemunhar a bondade e a misericórdia de Deus para com todos
aqueles a quem a partilha de um projeto comum fez sofrer e que, por diversas
razões, não puderam realizar esse ideal que um dia, diante de Deus e da comunidade,
se comprometeram a viver.
• As crianças que Jesus nos apresenta
no Evangelho deste domingo como modelos do discípulo convidam-nos à
simplicidade, à humildade, à sinceridade, ao acolhimento humilde dos dons de
Deus. De acordo com as palavras de Jesus, não pode integrar o Reino quem se
coloca numa atitude de orgulho, de auto-suficiência, de autoritarismo, de
superioridade sobre os irmãos. A dinâmica do Reino exige pessoas dispostas a
acolher e a escutar as propostas de Deus e dispostas a servir os irmãos com
humildade e simplicidade.
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