23º DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mateus 18,15-20 (Ano
A)
Prosseguindo com a leitura semi - contínua do
Evangelho de Mateus, a liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum
faz um salto considerável: do capítulo dezesseis, lido domingo passado,
passa-se para o capítulo dezoito. Considerando que o centro do capítulo
dezessete é o episódio da transfiguração, e já fora lido em dois domingos no
ano litúrgico corrente – 2º domingo da Quaresma e festa da transfiguração –,
esse salto é bastante compreensível. O texto lido neste domingo, portanto, é Mt
18,15-20. Como se sabe, o capítulo dezoito do Evangelho de Mateus compreende o
quarto dos cinco grandes discursos de Jesus na respectiva obra. Esse discurso
trata das relações entre os membros da comunidade, por isso, é
convencionalmente chamado de “discurso comunitário” ou “discurso eclesial”. Com
ele, o evangelista procurou responder questões e problemas concretos das suas
comunidades, marcadas por uma forte crise de identidade, com sérias
dificuldades de manter fidelidade aos ensinamentos de Jesus, devido às pressões
externas e aos problemas internos, como divisões e rivalidades entre seus
membros e a forte tendência hierarquizante das lideranças. Por isso, os
ensinamentos de Jesus nesse discurso têm como primeiro objetivo apresentar a
comunidade cristã como uma comunidade de iguais, marcada pelo amor, humildade e
perdão recíprocos, segundo estilo de vida apresentado de modo programático nas
bem-aventuranças (Mt 5,1-12), que abriram o primeiro discurso, conhecido como o
“discurso da montanha” (M 5–7). É importante que o evangelista não chega a
descrever o modelo de comunidade proposto por Jesus. Mas, ao dizer como Jesus
quer que seus discípulos vivam, ele termina traçando o retrato ideal da
comunidade cristã.
Como o texto que a liturgia oferece começa já quase
na metade do discurso, convém recordar o início para contextualizá-lo e, assim,
compreendermos melhor, tanto o evangelho de hoje quanto o discurso inteiro.
Ora, esse discurso é a resposta de Jesus a uma pergunta absurda dos discípulos,
conforme o primeiro versículo do capítulo: «Os discípulos aproximaram-se de
Jesus e perguntaram-lhe: ‘Quem é o maior no Reino dos céus?’» (18,1). Os
discursos de Jesus recordados por Mateus não surgiram do nada, mas sempre
partiram de situações bem concretas, seja do que Jesus contemplava no mundo e
na sua comunidade, seja do que ele ouvia dos seus discípulos. Essa pergunta
sobre quem é o maior soou completamente absurda para Jesus, porque ela revela
que os discípulos ainda não haviam compreendido quase nada do Reino dos céus. E
tudo o que Jesus tinha ensinado até então consistia no Reino dos Céus. Ora,
desde o início da sua pregação, Jesus tinha apresentado o Reino dos céus como o
centro da sua mensagem. O Reino corresponde a uma sociedade alternativa ao
sistema vigente, sem relações de poder, nem hierarquia entre os seus membros.
Se os discípulos ainda perguntavam quem era o maior, é porque ainda não haviam
compreendido nem aceitado essa proposta.
Além da introdução ao discurso, é importante
recordar também que, pouco antes, Jesus havia feito o segundo anúncio da paixão
(Mt 17,22-23). Por incrível que pareça, quanto mais Jesus falava em cruz,
perseguição e sofrimento, mais os discípulos alimentavam seus sonhos de
grandeza e poder (Mt 20,20-28), demonstrando que não estavam ainda vivendo
segundo as bem-aventuranças (Mt 5,1-12), ou seja, não tinham assimilado a
proposta de vida compatível com o Reino. Sem dúvidas, essa era também a crise
da comunidade de Mateus, cerca de quatro décadas após a morte de Jesus. A
tendência hierarquizante era cada vez mais forte, por isso o evangelista faz
questão de recordar as palavras de Jesus contrárias a essa tendência, bem como
a rivalidade entre os membros, as divisões e ambições, tudo isso como
consequência de uma visão equivocada do projeto de Jesus. Voltando para o
discurso em si, convém ainda recordar que o trecho proposto pela liturgia de é
precedido pela parábola da ovelha perdida (Mt 18,10-14). Assim, podemos dizer
que o nosso texto é uma espécie de explicação da parábola, uma vez que, ao tratar
da reconciliação fraterna, o texto evidencia o esforço da comunidade para que o
perdão seja buscado a todo custo e, assim, a fraternidade seja plenamente
vivida. Os membros da comunidade devem esforçar-se ao máximo para refletirem em
suas vidas a vontade do Pai: «Vosso Pai, que está nos céus, não quer que se
perca nenhum destes pequeninos» (18,14). Ora, para que nenhum dos
pequeninos se perca, a comunidade não pode medir esforços; deve empenhar-se com
todos os meios disponíveis para que prevaleça o amor, o perdão e haja a
reconciliação.
Feita a devida contextualização, voltamos a nossa
atenção para o texto específico de hoje, que funciona como uma espécie de
explicação da parábola que o precede, como afirmamos antes. Eis o primeiro
versículo: «Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em
particular, a sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão» (v.
15). A possibilidade do pecado e da ofensa já deixa muito claro que a
comunidade não é perfeita, pois seus membros também não são perfeitos. Não
obstante as imperfeições, a comunidade é, antes de tudo, um espaço fraterno,
pois seus membros são todos irmãos e irmãs. De fato, uma das informações e
ensinamentos mais importantes desse versículo é o uso da palavra irmão (em
grego: ἀδελφός – adelfós). Independentemente da falta cometida por
alguém, a fraternidade, como regra básica da comunidade cristã, deve ser
buscada em todas as circunstâncias. A correção em particular é o primeiro
recurso para sanar os danos de um erro cometido. Nada de exposição e
humilhação; entre irmãos e irmãs, deve haver liberdade para perceber juntos o
erro e a necessidade de correção para o bem da comunidade. Não é a posição de
um superior para com um subalterno, mas de um irmão que busca outro irmão para
recompor a unidade da comunidade. Ganhar o irmão significa recuperá-lo para a
comunidade, ou seja, reatar com ele os laços de fraternidade.
Caso essa primeira tentativa não funcione, novos
meios devem ser buscados, como indica Jesus: «Se ele não te ouvir, toma
contigo mais uma ou duas testemunhas para que a questão seja decidida sob a
palavra de duas ou três testemunhas» (v. 16). O cuidado com o irmão
continua muito evidente: nada de expô-lo publicamente. Contudo, para que não se
perca, é necessário continuar buscando a sua reconciliação e seu retorno à
vivência da fraternidade. Tendo falhado a primeira tentativa, busca-se uma
segunda. Nessa, recorre-se ao princípio judaico do testemunho, ao aconselhar
que se tome uma ou duas testemunhas, para que o testemunho seja válido (Dt
19,15). Aqui, no entanto, não se trata de um recurso jurídico, mas sim da ajuda
mútua. Mais do que mostrar o erro, o esforço da comunidade deve ser um
convencimento para que o irmão não se aparte dela. A comunidade fica incompleta
quando um membro se separa, por isso, não devem faltar esforços para que o
irmão seja recuperado, como faz o dono das cem ovelhas que, percebendo que
apenas uma se perdeu, ele deixa as outras noventa e nove e sai em busca daquela
perdida, e não sossega enquanto não a encontrar (Mt 18,12-14). Isso relação
deixa ainda mais claro que o texto de hoje possui uma função explicativa em
relação à parábola que o antecede no conjunto do discurso. As diversas
tentativas de reconciliação entre os membros da comunidade devem ser, portanto,
reflexos do esforço do Pai para que nenhum pequenino se perca, o que fora tão
bem ilustrado com a parábola da ovelha perdida.
Mesmo que a segunda tentativa não funcione, ainda
há outros recursos e meios, como sugere Jesus: «Se ele não vos der ouvidos,
dize-o à Igreja» (v. 17a). A terceira tentativa para que o irmão não se
perca da comunhão fraterna é levá-lo à comunidade, ou seja, à Igreja. Aqui, a
Igreja não significa uma instância jurídico-institucional, mas o espaço de
comunhão e fraternidade. Por isso, ela deve ser comunicada e ficar a par de
todas as situações que envolvam seus membros. Trata-se, acima de tudo, da
comunidade reunida, a assembleia dos que crêem (ἐκκλησίᾳ –
ekklesia). Esse conselho de Jesus é
mais um sinal da sinceridade e transparência
com que os irmãos e irmãs da comunidade cristã devem viver. Como um corpo que é
a comunidade, seus membros têm direito de saber como andam as relações entre os
demais membros, afinal, o bom funcionamento do corpo depende da saúde e do bem
de todos os membros. A comunidade reunida, como espaço de comunhão e oração,
deve também fazer da celebração uma oportunidade de crescimento com a
reconciliação de seus membros. Por isso, a Igreja-comunidade deve ser informada
sobre qualquer membro que tenha se afastado da fraternidade, pois isso
compromete a comunhão e, consequentemente, a vivência do projeto de Jesus.
É possível que até mesmo a comunidade reunida não
seja suficiente para convencer o irmão da necessidade da reconciliação. Assim
como é espontâneo o ingresso na comunidade, também deve ser o afastamento, o
que muitas vezes ocorre até por falta de compreensão e acolhida. É claro que
jamais um membro deveria se afastar da comunidade, mas é possível que aconteça,
até porque a comunidade não possui força coercitiva e nem deve utilizar meios
parecidos. Cada pessoa é livre para aderir ou não ao projeto de Jesus, por
isso, ele previne que pode ser que nenhuma tentativa funcione, nem mesmo o
conselho da assembleia reunida seja suficiente para o retorno do irmão: «Se
nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador
público» (v. 17b). A princípio, parece tratar-se de uma decisão drástica.
Frequentemente, essa passagem é interpretada como uma espécie de excomunhão, e
até utilizada para justificar esse procedimento. Porém, essa interpretação
distorce completamente o sentido do texto e do conjunto da mensagem de Jesus.
Contradiz, inclusive, a parábola que o antecede, aquela da ovelha perdida. O
real significado dessa expressão é: se aquele irmão não se convenceu da
necessidade de viver em paz com outro, se ele não se deixou mais convencer pela
beleza da vida fraterna e comunitária, apesar de tanto esforço e várias
tentativas, ele precisa refazer o caminho.
Para as comunidades cristãs originárias, ser
tratado como pagão ou publicano não significava ser excomungado; para as
comunidades das sinagogas contemporâneas à comunidade de Mateus, sim. Mas, para
a comunidade cristã, ser tratado como pagão ou publicano significava ser, de
novo, destinatário do Evangelho, necessitado do anúncio. Embora o texto
litúrgico use a expressão “pecador público”, é mais adequado usar “publicano”
ou “cobrador de impostos”, pois corresponde melhor ao termo empregado pelo
autor, na língua original (em grego: τελώνης – telónes). Ora, ao longo de todo o
Evangelho, os cobradores de impostos e os pagãos são destinatários do interesse
de Jesus e, portanto, da sua Boa Nova. Essas duas categorias de pessoas eram
desprezíveis para os fariseus, mas jamais para Jesus. Inclusive, Jesus era
conhecido por «comer com os cobradores de impostos e pecadores» (Mt
9,11; 11,19). Isso quer dizer que ele jamais desprezava alguém por ser pecador
ou cobrador de impostos e por nenhum outro rótulo negativo imposto pela
sociedade e a religião do seu tempo. Ora, a comunidade cristã não pode ser
pautada pelos mesmos princípios dos fariseus, e sim pelo amor de Jesus e do
Pai, por ele revelado. Por isso, deve ter coragem de voltar atrás e recomeçar
seu caminho formativo para o discipulado, quantas vezes for necessário, indo ao
encontro daqueles e daquelas que se afastaram, como deve fazer com os
pecadores, publicanos, pagãos e todas as categorias que ainda não se deixaram
humanizar pelo amor de Jesus. Portanto, como comunidade inclusiva, a Igreja deve
buscar todos os meios para que nenhum pequenino se perca.
Continuando sua catequese sobre o esforço da
comunidade para a inclusão e a acolhida de todas as pessoas, Jesus reforça sua
instrução já dada no episódio de Cesaréia de Filipe, a respeito da comunhão e
sintonia que deve haver entre os membros da comunidade, sobretudo as
lideranças, e a vontade do Pai e da sua mesma: «Tudo o que ligardes na terra
será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu»
(v. 18). O céu, nesse versículo, significa o mundo de Deus, onde é originado o
projeto de Reino que Jesus veio inaugurar neste mundo. E a comunidade deve se
esforçar continuamente para manter-se sintonizada ao mundo de Deus, para não
distorcer o projeto de Jesus. É claro, portanto, que esse versículo não
compreende uma delegação de poderes, mas de responsabilidade. A comunidade que
vive, de fato, o projeto de Jesus, sintetizado nas bem-aventuranças, é reflexo
do céu. As relações fraternas de amor e perdão são os distintivos da comunidade
cristã. Não é necessário ter poder para que as coisas da terra sejam
confirmadas pelo céu; basta coerência, testemunho e, sobretudo, amor! Vivendo à
maneira de Jesus, mantêm-se em sintonia com o céu. E a maneira de viver de
Jesus é toda pautado pelo amor. Amor gratuito, universal, livre e humanizante,
destinado a todas as pessoas, inclusive aos pagãos e pecadores. O que faz algo
ser ligado na terra e no céu simultaneamente, portanto, não é um decreto ou uma
ordem, mas o amor.
Na continuação do texto, fica ainda mais evidente
que a principal preocupação de Jesus é a unidade na comunidade cristã. E, ao
Pai, importa que seus filhos tenham fé e mantenham entre si o amor fraterno e a
concórdia: «De novo vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra
sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isso lhes será concedido por meu Pai
que está nos céus» (v. 19). A preocupação em repetir o ensinamento só
reforça a importância do que está sendo ensinado. Jesus diz de novo, com outras
palavras, que a comunidade deve manter-se completamente alinhada ao seu
projeto, vivendo em concórdia, para que tenha suas aspirações respaldadas pelo
Pai que está nos céus. Não importa o tamanho da comunidade, pode ser apenas
dois ou três, o importante é que se viva em fraternidade. Inclusive, do verbo
empregado pelo evangelista, na língua original, traduzido por “estar de acordo”
(em grego: συμφωνέω –
symfoneo), deriva a palavra sinfonia, que evoca harmonia e concórdia. Isso é
imagem da concórdia, da vida fraterna que devem vigorar na
comunidade. É claro que a concórdia não significa uniformidade na comunidade,
mas significa a vivência da linguagem universal cristã: o amor. Como a passagem
se refere especificamente à oração, quer dizer que, antes de dobrar os joelhos
e abrir os lábios para dirigir uma prece ao Pai, a comunidade deve viver a
concórdia interna, respeitando as diferenças, obviamente.
A autêntica comunidade cristã, reconciliadora e
orante, é o lugar privilegiado da presença de Jesus: «onde dois ou três
estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles» (v. 20). Aqui,
o evangelista retoma um dos temas principais de todo o seu evangelho: a
presença do Senhor no meio da comunidade e da inteira humanidade (Mt 1,23;
18,20; 28,20). Ou seja, do começo ao fim do seu evangelho, Mateus apresenta
Jesus como o “Deus conosco”, o Deus que está, o Deus que é presente. Aqui está
também a justificativa para que a comunidade nunca se canse de buscar o retorno
daqueles que se afastaram: é a presença do irmão que gera comunhão, e essa
comunhão garante a presença de Jesus. Na época da redação do evangelho, como o
templo já havia sido destruído, os judeus afirmavam que Deus estava presente
onde dois ou mais estivessem reunidos para estudar a Lei. Com essas palavras,
Jesus diz que não é o estudo da lei que garante a presença divina, mas é o seu
nome. O evangelista entende que reunir-se no nome de Jesus não é apenas
pronunciar palavras juntos, mas viver de acordo com o seu ensinamento. Com
isso, ele combate as tendências individualistas que começavam a aparecer na sua
comunidade, mostrando a beleza de viver a fé “com”, em companhia do irmão e da
irmã, e quando alguém se afasta não devem faltar esforços para ir atrás, não
para condenar e dar lição de moral, mas por saber que a vida tem mais sentido
quando se vive em comunidade.
Uma comunidade só é autenticamente cristã quando é
possível perceber e sentir nela a presença de Jesus. Essa presença só se
manifesta quando há amor, perdão, reconciliação e compreensão. Havendo esses
elementos, independentemente do número de membros, mesmo que sejam só dois ou
três, o Senhor estará presente. Por isso, a comunidade deve empenhar-se ao
máximo possível para recuperar um irmão ou irmã afastado; mesmo que seja
somente um, a sua ausência pode comprometer a presença do Senhor!
Nenhum comentário:
Postar um comentário